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quarta-feira, 27 de julho de 2011

A PROVA

Miguel Azevedo, produtor e grande conhecedor de vinhos, entrou naquele requintado restaurante de Lisboa, foi acompanhado à mesa pelo Chef de Sala, leu a carta e encomendou um tornedó mal passado, guarnecido com legumes salteados e esparregado. Pediu um Pegos Claros, reserva tinto, colheita de 1982.
Instantes depois, o escanção dirigiu-se à mesa com o vinho já depositado num decantador. Com extremo cuidado e aparato profissional, verteu uma pequena quantidade no copo e esperou que o cliente o provasse.
O Miguel Azevedo agitou o copo em lentos movimentos elípticos, chegou-o aos lábios, saboreou, quase mastigou o néctar, repetiu mais umas duas vezes o cerimonial, chegou o copo ao nariz, aspirou o aroma vínico, fitou o empregado e sentenciou:
- Este vinho é de facto de 1982, mas não é Pegos Claros!
O escanção ganhou coragem e atreveu-se a contradizer o cliente. Que sim, que era realmente um reserva tinto Pegos Claros de 1982.
Que não, insistia o Miguel Azevedo, com ar contrariado. O Chef aproximou-se e polidamente garantiu que realmente aquele vinho era Pegos Claros.
- Sabe, meu caro? Quem produziu este vinho fui eu e asseguro-lhe que não é Pegos Claros. É Pegões!, sentenciou o Miguel Azevedo…
O escanção interveio:
- Perdoe-me V. Exª, eu conheço bem a região onde se produzem estes vinhos. Pegões e Pegos Claros são duas vinhas de iguais castas, situadas a não mais do que 500 metros uma da outra, tratadas da mesma maneira, as uvas são colhidas, preparadas e pisadas na mesma Adega, segundo os mesmos métodos. Como pode V.Exª ter tanta certeza de que este vinho não é Pegos Claros. Na verdade, tudo indica que ambos sejam exactamente iguais.
- Mas não são!, disse o Miguel Azevedo.
E, em voz sussurrada, aconselhou o escanção:
- Faça a seguinte experiência: quando chegar a casa peça à sua namorada que se dispa completamente. Aprecie os orifícios mais próximos do seu corpo. Cheire-os, deguste-os e compreenderá que, apesar da proximidade geográfica, têm aromas e sabores diferentes e completamente distintos…

terça-feira, 19 de julho de 2011

O LIVRO


Vestiu o seu melhor vestido que deixava adivinhar todos os contornos do seu corpo, perfumou-se, pegou no embrulho de papel de seda com um laço dourado e dirigiu-se a casa do Filipe. Tinham combinado jantar em casa dele só os dois. Era o dia do seu aniversário...
Tocou a campainha e quando o Filipe abriu, beijou-o , deu-lhe os parabéns e entregou-lhe o embrulho, dizendo que não conhecia o autor mas que era um romance que a empregada da livraria lhe tinha recomendado.
O Filipe agradeceu a prenda, rasgou o papel do embrulho e, atónito, só ao fim de uns minutos conseguiu articular algumas palavras, eufórico:
- Onde descobriste este livro? Há meses que tento encontrá-lo. Já corri dezenas de alfarrabistas e nunca o consegui ver. Obrigado!
Ela via a felicidade que lhe transparecia do olhar, da boca entreaberta, dos gestos, da maneira sensual como os seus dedos acariciavam a capa e folheavam sôfregas e ao acaso as páginas.
Como ela desejava naquele momento ser tocada pelas suas mãos da mesma forma que ele acariciava embevecido aquele livro!
Mas o Filipe era um viciado na leitura. Depois de jantarem, sentaram-se no sofá da sala mas ela sentia que a atenção dele estava dedicada exclusivamente àquele livro. Ela sabia que só depois de ter devorado aquelas quatrocentas páginas é que o Filipe lhe dedicaria alguma atenção.
Ficou a observá-lo, paciente, excitando-se em silêncio com os suspiros e os gemidos que por vezes ele deixava escapar a cada virar de folha.
Por volta das quatro da madrugada o Filipe finalmente concluiu a leitura, recostou-se no sofá, estendeu-lhe os braços e ela anichou-se no seu colo.
Despiram-se. Ela sabia que depois da excitação da leitura não podia perder tempo com preliminares. O Filipe estava prestes a atingir o orgasmo.
Ela seria o epílogo daquele livro...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

MILAGRE

Os meus avós paternos tinham a sua casa num pequeno terreno que se estendia ao longo da linha de comboio da Lousã, uns 50 metros adiante do apeadeiro do Calhabé.
Nele cultivavam produtos hortícolas que a minha avó depois vendia diariamente no Mercado D. Pedro V. Como o terreno era atravessado por um regato que o humedecia, resolveram plantar uma pequena leira de melancias, para experimentar.
O resultado foi melhor do que tinham imaginado. Toda a gente que por lá passava elogiava os belos frutos rasteiros que ali iam crescendo. Chegavam a sentir crescer água na boca só de os mirar. As melancias nascidas eram de grandes dimensões e, dizia quem as provava, eram saborosíssimas e muito sumarentas.
Até o Padre Aníbal se deixou seduzir pelos espécimes. Uma tarde de sábado, acompanhado pelo sacristão, dirigiu-se ao terreno, bateu várias vezes à porta da casa mas ninguém os atendeu. Ele não sabia que nesse fim de semana os meus avós tinham ido a Lisboa visitar o meu tio Fausto e o meu pai que, na altura, ali viviam.
Como estava determinado a levar uma melancia para se deleitar na sua casa com uma ou duas fatias e um naco de presunto, disse ao sacristão para ir colher uma para levarem. O “marreco” revirou os olhos incrédulo:
- Oh Sr. Prior, não me diga que vai roubar uma melancia!
- Não sou nenhum ladrão, sossegou-o o Padre Anibal. Além de que roubar é um pecado grave que eu jamais me atreveria a cometer. Meteu a mão na sotaina, retirou de lá uma moeda e disse ao sacristão para a deixar junto ao pé da melancia que ele cortasse.
Na missa dominical da semana seguinte, o tema da homilia era a honestidade e o Prior, iniciou-a  dizendo que ia contar aos paroquianos um milagre ocorrido na semana anterior na horta do Sr. Felício. Um anjo foi lá, dizia ele, levou uma melancia e deixou no sítio de onde a arrancou uma moeda para a pagar. Ao lado, o sacristão olhava-o de esguelha mas não se atreveu a contradizer o padre. Pelo contrário, até acenava afirmativamente com a cabeça, corroborando a história.
Cá fora, no fim da missa, no átrio da igreja, a minha avó Piedade viu-se rodeada por um grupo de mulheres que a felicitava pelo milagre divino acontecido no seu terreno, e disse-lhes:
- Os anjos estão desactualizados quanto ao preço das coisas. Aquela moeda miserável que lá deixaram não dá para pagar nem uma alface. Quanto mais para uma melancia de mais de cinco quilos!

Rui Felício

quarta-feira, 13 de julho de 2011

NO QUARTO ANDAR EM FRENTE

Por essa altura, uma bela quarentona de cabelos pretos de azeviche, veio morar no quarto andar do prédio defronte da minha casa.
Os meus vinte e seis anos, ainda solteiros e viçosos, despertaram ao vê-la à janela, a um sábado de manhã, a sacudir o pó de um tapete, o busto firme e redondo a dançar dentro da blusa preta e justa.
À noite regressava a casa cedo e quedava-me invariavelmente na varanda da sala, fumava cigarros atrás de cigarros a olhar o vai vem do perfil elegante e de formas generosas da minha nova vizinha a cirandar na cozinha com a luz acesa.
Noite após noite, depois de ela apagar a luz, acabava por me estender na cama, com os olhos fixos no tecto sem o ver, a imaginar o que estaria ela a fazer naquele momento.
Construía as mais mirabolantes imagens, adivinhava-a no quarto, deitada de lado, o braço roliço dobrado sob o peito, o respirar cadenciado de um sono calmo, retemperador das lides diárias. E o desejo de estar com ela inundava-me a mente e o corpo...
Fazia planos para, no dia seguinte, ir bater-lhe à porta para lhe dizer que estava apaixonado por ela. Mas logo os abandonava, receoso da reacção que ela pudesse ter.
Não! Tinha que encontrar uma forma menos intempestiva, de proporcionar um encontro ocasional com ela, mas para isso tinha que descobrir quando é que saía de casa, para ir trabalhar ou para ir às compras.
Embora mais velha do que eu, era o género de mulher que me atraía. Cheia, robusta, sólida e, sobretudo, morena de cabelos negros.
Eu perdia-me por mulheres de cabelos pretos! Fazia parte dos meus genes!
No sábado seguinte de manhã, acordei cedo e lá fui, como de costume, para a varanda, na expectativa de a ver sair e tentar um encontro casual.
Passado um bocado, a janela do quarto andar abriu-se e por entre as portadas, vejo sair um tapete oscilando no vazio preso pelas mãos da minha vizinha que o sacudiam vigorosamente.
O corpo dela debruçou-se, pela primeira vez olhou para mim e sorriu-me. O meu coração disparou em incontroláveis e fortes batidas, acenei-lhe de leve com a mão com um leve sorriso, e só então reparei que os seus cabelos estavam louros. Talvez por causa do meu ar espantado, disse-me a rir que tinha pintado o cabelo!
Mandei os genes às malvas e reconfigurei os meus gostos! A partir daquela visão, passei a ser um perdido, um louco por mulheres louras...
Rui Felício

quarta-feira, 6 de julho de 2011

REGRESSO

Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.
Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.
O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.
Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.
O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?
Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar,  e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!
A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.
Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo.
Com alguém que era um intruso em terra alheia!
No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.
Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

NOTA DE RODAPÉ:
Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:
A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo.  Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.
A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.
Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011