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sexta-feira, 18 de março de 2011

APARTHEID

Havia casas de banho públicas perfumadas e limpas, para uns e outras sujas e mal cheirosas, para os outros.
Nos restaurantes mais luxuosos só podiam entrar os da cor dominante. Os da outra cor só comiam em restaurantes populares.
No Metro, havia carruagens com ar condicionado destinadas aos privilegiados e, ao fundo do comboio, duas carruagens velhas, húmidas, desconfortáveis onde se apinhavam os outros, como sardinhas em lata.
Nos modernos autocarros prateados era proibida a entrada à raça dominada.
Nas deslocações pela cidade, os servos pertencentes a esta raça segregada tinham que se contentar com umas camionetas velhas, ferrugentas, a cair de podres, com os estofos rotos e onde entravam os gases dos motores antiquados e quase em fim de vida.
Os casamentos mistos eram proibidos. Desta forma se evitava a miscigenação que a classe dominante temia.
Nas praias destinadas à classe dominante, as pessoas protegiam-se dos raios solares para não adquirirem excessivamente a pigmentação de pele, característica da ralé, dos segregados.
É que, naquela atmosfera rarefeita de Marte, os raios solares azulavam e arroxeavam a bela pele verde-alface dos corpos sensuais, de atraente viscosidade, das mulheres e dos homens que dominavam o planeta.
E eles e elas não queriam ser confundidos com os seus escravos de pele ressequida e azul...

quinta-feira, 17 de março de 2011

VOYEURISMO

A Lurdes nasceu nas Torres do Mondego no seio de uma pobre família. Era a mais nova de um rancho de filhos que o Joaquim Vinagre e a mulher ia fazendo uns atrás dos outros. Do cultivo de uma pequena leira num íngreme cabouco perto do rio, o Vinagre mourejava ao sol e à chuva, no arroteio da terra, para tirar umas couves, uns feijões verdes, algumas batatas e nabos com que faziam o caldo ralo para ir enganando a fome da filharada.

Tinha a Lurdes os seus 7 anos, foi com o seu pai a casa do Senhor Teodósio, o homem rico da terra.  Quieta em cima das pernas semelhantes a dois finos caniços, coçava o cabelo encaracolado muito preto que lhe emoldurava a carita chupada de onde sobressaiam dois olhos negros assustados, como os de uma gazela que sente, próximo, o cheiro do leopardo.

Fitava o dono da Quinta do Caneiro e o seu pai, que contorcia o chapéu nas mãos nervosas e que pedia para ele a aceitar como criada na sua casa, porque já não conseguia arranjar comida para alimentar tanta gente.
Ali cresceu, sem nunca ter ido à escola, arrumando a casa, fazendo as camas, ajudando na cozinha, despejando pela manhã, na fossa, os penicos cheios que ia buscar a cada quarto.
O seu corpo, antes franzino, começou a ganhar formas, as cores animavam-lhe o rosto, a boca de carmim despertava desejos aos rapazes da terra. Aos dezasseis anos era uma bela mulher, de grandes olhos pretos, apaixonada em segredo pelo Luis, filho do patrão, que andava a estudar em Coimbra. Era um rapaz forte, musculoso, bonito, que trespassava as raparigas da aldeia com os seus olhos azuis.
Naquele domingo, a seguir aos afazeres matinais, a Lurdes preparava-se para ir à missa, como de costume, com a D. Alzira mulher do dono da Quinta.
Da gaveta da cómoda carcomida pelo caruncho, no seu acanhado quarto, a Lurdes sacou a roupa domingueira que precisava. Uma blusa bordada no peito, um saiote branco debruado a renda, uma saia plissada de xadrez. Poisou tudo em cima da cadeira. Fitou-se em frente ao espelho antes de se lavar no alguidar de esmalte onde previamente tinha despejado um jarro de água morna. Foi deixando cair a roupa lentamente sem nunca deixar de se mirar no espelho. Deslumbrante na sua nudez virginal, olhava a pele rija, amorenada, firme, voluptuosa, que vestia as carnes torneadas do seu corpo. Duas pétalas de rosa negra arrebitavam-se-lhe no peito, erécteis, simétricas, tentadoras...
Chapinhou na água morna, onde embebeu um pano grosso e passou-o, a escorrer, no rosto, nos sovacos, nos seios, com o pensamento absorto no Luis, que dormia no quarto ao lado.
Assustou-se, quando, espantada, reparou num olho azul num buraco disfarçadamente aberto ao lado do espelho, no tabique de madeira que servia de parede divisória entre os quartos.
Tapou-se à pressa e refugiou-se num canto do quarto com o coração a bater desenfreadamente. Nunca contou isto a ninguém. Fingiu que não tinha dado por nada.
A partir de então, quem estivesse no quarto do Luis, com atenção, conseguiria ver um grande olho preto a espreitar pelo mesmo buraco do tabique.

quarta-feira, 16 de março de 2011

CONFESSO...

Que bom que foi o almoço de Penacova!
Mas...
Como sempre acontece, depois de um fim de semana em Coimbra e do reencontro de tantos amigos, do convívio às refeições e no Samambaia, do desfiar de recordações da juventude à medida que, em pequenos grupos, vamos passeando pelas ruas do Bairro, chega a hora do meu inevitável regresso à Ericeira.
Pelo caminho, vou escutando música suave, olho os farolins vermelhos dos carros que seguem à minha frente na auto estrada, mas o pensamento ainda está em Coimbra e revive os bons momentos ali passados durante os dois dias anteriores.
No domingo, sentado confortavelmente ao volante, via a chuva miudinha a bater no vidro. O cadenciado oscilar dos limpa pára-brisas embalava-me, entorpecia-me, provocava-me um sono que tentava vencer fumando mais um cigarro.
Tinha pressa de chegar à Ericeira, de tomar um banho, de descansar.
A pouco e pouco, as imagens de Coimbra iam-se esbatendo, substituídas pela ânsia de chegar.
Sabia que, dentro de casa, ela me esperava, que me iria receber de braços abertos, acolhendo-me depois de dois dias de separação.
Como a desejava!
Por mais que tentasse pensar noutras coisas, a obsessão de a rever, de a ter para mim, de sentir o seu calor, aumentava, absorvia-me, numa antecipação da doce intimidade que desfrutaria junto a ela.
Vivemos juntos há mais de cinco anos, é ela que me faz feliz, que me retempera as forças quando entro em casa depois de cada esgotante dia trabalho, fundindo-nos ambos num só ser indistinguível.
Já me imaginava à chegada, a ir tomar um banho quente, relaxante e depois, a aconchegar-me na maciez dos seus braços, a acariciá-la, a estimular-me com o seu cheiro e a sentir o seu corpo aveludado colado ao meu.
Adoro aquela poltrona em que me acomodo a ver televisão ou a ler um livro!  
Confesso...

terça-feira, 15 de março de 2011

HÁ DIAS AZARADOS

Reencontrei o Fernando Costa mais de 10 anos depois de eu ter saído de Coimbra em 1967.
Conheci-o na faculdade mas perdi-lhe o rasto quando ele interrompeu o curso para ir para a tropa em 1965.No pátio da empresa de vinagres, no Entroncamento, pertença de familiares seus, onde agora ele trabalhava, corriam obras de repavimentação, pelo que estava ali colocado um grande monte de pedras destinadas ao calcetamento.Num dos lados do pátio interior estava o escritório no 1º andar de um velho edifício que albergava no rés do chão um armazém repleto de garrafas de vinagres.Do outro lado da rua, o Frango Real, restaurante onde o Fernando Costa e muitos dos empregados da dita empresa habitualmente almoçavam.Certo dia, findo o almoço, o Costa atravessou a rua, passou o portão da empresa e, já no pátio, desdobrou o jornal que levava consigo, caminhando devagar e, desfolhando-o, ia lendo os títulos das noticias.Absorto na leitura, tropeçou distraído, no monte de pedras que ali estava, caiu e fez um lanho na testa. Meio atarantado ainda, aceitou a ajuda de um operário que o encaminhou para a enfermaria onde lhe limparam a ferida.Deram-lhe um maço de algodão e um frasquinho de álcool aconselhando-o a premir o algodão na testa e, de vez em quando, a embebe-lo em mais álcool, repetindo sucessivamente a operação até que o sangue parasse de correr.
Com o algodão numa mão encostado na testa e com o frasco de álcool na outra, resolveu dirigir-se à casa de banho do 1º andar e aí chegado, baixou as calças e sentou-se na sanita, que os intestinos assim o reclamavam.Por duas ou três vezes regou o algodão com mais álcool voltando a encostá-lo na ferida.Às tantas o sangue já tinha estancado e o Costa achou que já podia deitar fora o algodão. E assim fez...
Deitou-o para a sanita, ainda bem encharcado em álcool.Acto continuo, acendeu um cigarro e deitou o fósforo, ainda aceso também para a sanita.Claro que o fósforo aceso incendiou de imediato o algodão com álcool que ele tinha acabado de mandar para a sanita, levantando um fogacho que queimou o desprotegido traseiro nu do Costa.Convenceu-se o Costa que algum incêndio estaria lavrando no armazém por baixo do escritório, estando as chamas a subir pela canalização da casa de banho e, assomando a uma janelita que dava para o pátio, gritou:
- Chamem os bombeiros! Há fogo no armazém!
Não demoraram cinco minutos a chegar. Como não vissem qualquer fogo, subiram à casa de banho para indagar junto do Costa o que se teria passado.Seminu, este apontou-lhes para o traseiro, dizendo-lhes, exageradamente, que estava todo queimado. Colocaram-no numa maca e, enquanto desciam a íngreme escada de caracol que lhe dava acesso, o Costa ia relatando o sucedido.Um dos bombeiros, ao perceber finalmente o que se tinha passado, desatou a rir convulsivamente e, descontrolado, largou a maca que foi escorregando pelos degraus abaixo.O Costa, aflito, tentou agarrar-se aos prumos de ferro da escada mas, desastradamente, ficou com o braço enganchado entre dois deles. Resultado, fracturou o braço!
Lá o levaram para o Hospital de Torres Novas, com um golpe na testa, o traseiro queimado e um braço partido.
Pelo caminho, rebentou um pneu da ambulância e o motorista não coseguiu evitar o choque frontal contra uma árvore à beira da estrada. A porta de trás abriu-se e a padiola onde ia deitado o Costa, começou a deslizar, primeiro devagar, depois ganhando velocidade atravessou o alcatrão desgovernada.
O Costa foi cuspido e arranhou a perna no áspero e grosso betuminoso, ficando todo esfolado desde o joelho até ao tornozelo.
Correu três serviços: Ortopedia, unidade de queimados e serviço de pequenos curativos...
Há dias em que é melhor não sair de casa...

Rui Felício

quinta-feira, 10 de março de 2011

AMOR À PRIMEIRA VISTA


Desde sempre, ela tinha duvidado do tão propalado amor à primeira vista, mas agora estava certa que esse coup de foudre que incendiava repentinamente os sentidos, não era afinal uma figura de retórica.
Foi por isso que foi à loja da Rua Ferreira Borges onde há tempos tinha visto entrar aquele rapaz bem parecido, atraente, elegante, e perguntou se sabiam onde morava e o que fazia.
Disseram-lhe que era do Calhabé e que andava a estudar. Encheu-se então de coragem, esqueceu a sua congénita timidez, e resolveu ir até ao Café Aquário que ele frequentava, para esvaziar de uma vez, de dentro do seu peito, esse segredo dolorosamente guardado há mais de um mês.
Com ar melancólico, sentada na sala a abarrotar de gente, ela disse-lhe em voz sussurrada quase sem mexer os lábios, que o amava loucamente,  desde que há um mês o vira na Baixa. Pedia-lhe apenas que ele lhe desse a oportunidade de se conhecerem, de trocarem impressões...
Desde esse dia, não pensava em mais ninguém senão nele, quase não comia, acordava de noite a pensar nele ao seu lado, continuava ela a dizer-lhe, numa voz baixa, quase imperceptível, para não ser ouvida pelas restantes pessoas que estavam no Café.
Concentrado na leitura do Diário de Coimbra, de onde por vezes levantava os olhos, com ar alheado, parecia que ele, estranhamente, ainda nem tinha dado pela presença daquela bonita rapariga sentada na mesa ao lado.
Foi então que o Feliciano, apressado, entrou de rompante no Aquário, pediu uma bica ao balcão, e, reparando na presença do seu colega a ler o jornal, elevou a voz e berrou-lhe com o seu potente vozeirão:
- Estás bom Pedro? Não vais às aulas hoje?
Como não tivesse resposta, nem sequer um ligeiro aceno, deu a volta, postou-se mesmo em frente dele e repetiu a pergunta gritando ainda mais alto, perante o ar atónito e espantado da rapariga que não percebia a razão de tanta berraria.
- O seu nome é Pedro?, perguntou-lhe ela no mesmo registo de voz sussurrado com que antes lhe tinha estado a confidenciar a sua paixão.
O Feliciano, virou-se para ela e disse-lhe. Chama-se Pedro, é verdade, mas se quer que ele lhe responda tem de lhe gritar. É surdo que nem uma porta!
E tem a mania de só colocar o aparelho quando está nas aulas, concluiu...

Rui Felício

quarta-feira, 9 de março de 2011

NO CINEMA

Faltavam poucos minutos para as luzes se apagarem. Sentado na confortável poltrona, da Fila H, nº 7,esperava que chegasse a hora do inicio do filme, naquela moderna sala de cinema.
Apressadamente iam entrando os últimos espectadores, olhando os seus bilhetes e procurando os lugares neles indicados.
Uma jovem bonita, roliça, de curvas pronunciadas, percorreu a fila onde ele estava sentado, olhou, confirmou o lugar e sentou-se na Fila H, nº 9, a seu lado, ajeitando a mini saia que deixava ver umas coxas brancas, bem desenhadas.
Trocaram um olhar fugidio e um sorriso de circunstância, no mesmo momento em que as luzes se apagavam e surgiam no ecran as primeiras imagens do filme.
O cotovelo dele a pouco e pouco foi se encostando ao dela, ambos poisados no braço comum às duas cadeiras. Os seus olhos não se conseguiam despegar das coxas da rapariga, enquanto os braços de ambos se foram gradualmente encostando, sem que da parte dela houvesse nenhum sinal de afastamento ou indisposição. A perna dele a pouco e pouco encostou-se à dela. A respiração dele acelerava, o coração batia desordenadamente quando o ecran ficou negro e as luzes da sala se acenderam para o intervalo.
Afogueado, levantou-se para ir fumar um cigarro, não sem que antes, lhe dirigisse um sorriso que ela devolveu, mostrando uma boca provocantemente sensual que mais o endoideceu.
Voltou para a segunda parte do filme, disposto a levar mais longe os seus desejos. Logo que as luzes se voltaram a apagar, deixou a mão poisar em cima da perna dela. Os dedos iam roçando naquela pele macia, aveludada, devagar, com suavidade... Subiam milímetro a milímetro. Pressionava um pouco na face interior das coxas tentando afastá-las, mas quando isso aconteceu, ela pegou-lhe na mão e afastou-a.
Louco de desejo, ele voltou a colocar-lhe a mão entre as pernas e ela voltou a tirar-lha.
Estes avanços e recuos repetiram-se mais uma, duas, muitas vezes. Da última vez ele chegou mesmo a abafar um surdo gemido de dor, quando ela lhe beliscou a mão com força,  empurrando-a asperamente para longe das suas pernas.
Racionalmente, concluiu que a atitude dela não lhe deixava margem para dúvidas. A rapariga não lhe permitiria mais carícias. Antes que se gerasse algum escândalo que o deixasse atrapalhado, resolveu desistir definitivamente de lhe tocar.
Não fez mais nenhuma tentativa.
Levantou-se e saiu, envergonhado, antes de acabar o filme e sem para ela olhar sequer.
Mal sabia ele que aquela jovem mulher ali a seu lado, pensava de si para si, também ela já doida de desejo, quando o beliscou e lhe afastou a mão:
- Quando ele voltar a tentar, não resistirei mais, vou me abrir e entregar-me às suas carícias...

Rui Felício

segunda-feira, 7 de março de 2011

DESENCONTROS

Passaram-se mais de quarenta anos, desde que ela tinha saído de Coimbra para ir viver em New York...
Uma vida inteira!

Nos momentos de melancolia a Isabel abandonava-se aos seus pensamentos secretos, escondida dos olhares do marido e dos filhos, receosa que eles lhos adivinhassem. Perdia-se em recordações, deixava que a imagem do Luis, aquele que foi o amor da sua juventude, lhe aparecesse nítida, tão presente que quase sentia o seu contacto. Ondas de confidências, gritos de alma, desejos inconfessados abanavam-lhe o corpo, uma doce dor apertava-lhe o coração.
Tantas foram as vezes em que, abraçada ao seu marido, era ao Luis que realmente beijava, que acariciava, que sussurrava palavras de amor.
Nunca mais tinha tido notícias dele, mas jamais o esquecera.
Até que, há pouco tempo...
Viu o nome dele na internet. Ficara a saber que ainda vivia em Portugal, casado e com filhos, do outro lado do mar. Começaram a trocar mensagens, a princípio formais, depois mais íntimas.
Ela, uma mulher madura mas ainda fogosa e bonita, não se conformava por tamanha e tão longa separação.
Um dia, faço-te uma surpresa, apareço-te aí, nem que seja por uns dias, para desfrutarmos este amor que ainda nos une, escrevia-lhe ela nas mensagens que lhe mandava.
O Luis às vezes respondia-lhe que era ele quem lhe faria essa surpresa. Que também ansiava tê-la nos braços, mostrar-lhe todo o amor que também nunca deixou de lhe ter.

Certo dia, o Luis recebeu um telefonema. Era a Isabel a dizer-lhe que, como lhe prometera, estava no aeroporto da Portela para estar com ele. Indicou-lhe o hotel de Lisboa onde se iria hospedar por uma semana e pediu-lhe que fosse encontrar-se com ela.
O Luis, atónito, respondeu-lhe que naquele mesmo momento estava a desembarcar no aeroporto de Newark, para onde tinha ido à procura dela. Fazer-lhe a prometida surpresa...

Rui Felicio