Web Analytics

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

CHEGUEI TARDE



Há anos que sou cliente daquela loja de pronto a vestir para homem, na Av. do Uruguai.
Não é que seja barata, mas os fatos são de boa qualidade, a confecção é perfeita e consigo sem dificuldade encontrar o tamanho adequado sem necessidade de serem feitos arranjos, nem nas calças, nem nas mangas.
Já lá conheci várias empregadas. Tanto as que saem como as que as vêm substituir, são sempre de uma extrema simpatia, cordiais, solícitas, eficazes, competentes e, normalmente, muito bonitas. Com corpos esculturais, mulheres jovens mas já maduras e de grande beleza, não se lhes consegue ficar indiferente...
Mesmo que não tencione comprar nada, às vezes passo por lá só para ver se há novas colecções. Porém, de há um mês para cá, tenho-a visitado com maior frequência do que o habitual. 
Bem...porquê escondê-lo? Confesso que tenho ido à loja só por causa dela. Está na loja há pouco tempo, é nova, trigueira, salpicada por umas quase imperceptíveis manchas acastanhadas, que fazem lembrar pequenas sardas, e que lhe dão um atractivo especial, inexplicável, de sonho.
É a sensação de uma maciez aveludada, aquilo que sinto, quando, casualmente, os meus dedos lhe tocam, provocando-me um arrepio incontrolável no corpo. Suspiro baixinho, disfarço, as ideias atropelam-se-me em turbilhão e tento controlar o desejo louco de a ter. Evito que se perceba. Se calhar, sem sucesso...

Mas...
Um choque, um aperto no coração, foi o que senti no outro dia.
À porta, ainda não tinha entrado, vejo-a pendurar-se no pescoço de um homem jovem, bem constituído, que lhe sorria, que a afagava. Pelo vidro translúcido da porta, espreitava-os e adivinhava-lhes, com inveja, um ar de grande felicidade!
Nem cheguei a entrar. Dei meia volta e regressei a casa roído de ciúmes, recriminando-me pelo meu feitio inseguro e indeciso.
Pelo caminho tentei desvalorizar o inesperado episódio. Nos tempos modernos essas atitudes são triviais, as mudanças são comuns, as aparências nem sempre traduzem a realidade e, portanto, não devia preocupar-me demasiado.
Ontem decidi-me! Venci aquela estúpida indecisão, aquele marasmo, e resolvi passar pela loja ao fim do dia. Ganharia coragem e diria a verdade! Revelaria aquilo que me trazia o coração apertado. Não perdia nada com isso, monologava eu comigo mesmo... Assim acabaria com o sofrimento que me atormentava e que não tinha razão de ser!
Cheguei lá, procurei-a avidamente com os olhos. Mas não a vi!

Perguntei por ela, ansioso.
 A empregada que me atendeu disse-me que aquela bela e cara gravata de seda italiana, de um padrão invulgar, era exemplar único e que a tinham vendido no dia anterior...

 Rui Felicio

domingo, 5 de agosto de 2012

AS PALAVRAS QUE ELE NUNCA DISSE…




Queimavam-lhe a boca, afloravam-lhe aos lábios, mas no último instante retraía-se, engolia-as. Mil vezes as tinha ensaiado, outras tantas as tinha ocultado. Tímido, perdia-se em conjecturas,  adiava sempre o momento de as proferir, enganando-se a si próprio sobre as circunstâncias ideais para o fazer. Inseguro, receava que, ao dizê-las, fosse alvo do escárnio daquela a quem as queria oferecer. Desconfiava das certezas aparentes que todos os sinais lhe indiciavam e que o aconselhavam a decidir-se. Porque lhe tinham ensinado que a certeza absoluta depende da verificação de todas as premissas como hipótese condicional.  Bastaria o antagonismo de uma única premissa desconhecida dele, para que a certeza absoluta aparente, que os indícios lhe pareciam garantir, se desvanecesse.
Os anos passaram. Muitos, muitos anos…
Essa aflitiva obsessão foi-se esbatendo com o tempo, gravada num lugar remoto do cérebro, de onde cada vez mais raramente saía. Por instantes breves, como fogacho etéreo, incaracterístico, suave, rápido, como página de um livro que teimosamente se abre sempre nessa mesma folha.
Questionava-se, sempre que isso acontecia, sobre se algum dia as devia ter dito. A razão dizia-lhe que tinha feito bem em as ocultar, o coração dizia-lhe o contrário. A realidade mostrava-lhe que o tempo já tudo tinha curado, que não era altura de manter tais recordações.
Nunca mais se tinham encontrado. Nada sabiam da vida um do outro. Décadas de separação eram o cimento que fechava as suas vidas como túmulos.
Mas inesperadamente encontraram-se.
Ele ficou a saber então que ela todos os dias tinha esperado por essas palavras.
Mas não era agora o momento para serem ditas. Tornavam-se desnecessárias…
Porque, afinal, ambos as conheciam. Desde sempre!

Rui Felicio

segunda-feira, 18 de junho de 2012

CAÇADOR VEGETARIANO



Enchidos, chispe, toucinho, mão de vaca, entrecosto eram os seus alimentos preferidos.
Uma boa feijoada de lebre, uma perdiz estufada, um pombo na púcara, uns tordos fritos em banha de porco também o faziam salivar, mas só os podia degustar na época venatória.
Quando abria a caça, o Melo levantava-se de madrugada, municiava-se e equipava-se como quem vai para a guerra, palmilhava veredas e montes, emboscava-se, camuflava-se è espera do animal que lhe passasse no perímetro de tiro. Mais do que abater as vítimas, era o acto de caçar que o viciava. Estava-lhe na massa do sangue, sentia um frémito a percorrer-lhe o corpo, um arrepio, um prazer mórbido de matar. Sentia-se um ser poderoso quando empunhava a espingarda. Era a forma que encontrava de exercer a vingança sobre seres indefesos, dos maus tratos que sofria no dia a dia.
O médico um dia deu-lhe a má notícia. A sua vida estava por um fio! Mas ainda ia a tempo de remediar o mal se passasse a alimentar-se de forma racional. Proibiu-lhe as carnes, os enchidos, as gorduras animais. Preferencialmente, devia alimentar-se de legumes, de frutas, de vegetais!
Assustado, o Melo decidiu que passaria a ser vegetariano. Jamais voltaria a comer carne nem peixe!
Mas o que nunca deixaria de ser era caçador! Se não podia comer carne, passaria a ser um caçador vegetariano.
Até tinha vantagens, dizia ele de si para si. Porque não existe época venatória para se caçarem vegetais.
Agora, era raro o dia que não o vissem sair de manhã cedo, de caçadeira ao ombro, vestido de camuflado, cartucheiras à cintura, em direcção às hortas e pomares dos arredores.
 À hora de almoço regressava, orgulhoso, com tomates, alfaces, pepinos, pimentos, couves, laranjas, pêssegos, tudo pendurado dos ilhoses do cinturão.
Certa vez, ao fim da tarde no café, numa roda de amigos, perguntaram-lhe para que ia ele de caçadeira em punho, armado em caçador, para depois regressar com legumes e frutas. Os vegetais não fogem, galhofavam os amigos…
- Eu sei! respondeu o Melo. Mas quando os donos aparecem e me tentam proibir de trazer as peças de caça, eu tenho que os abater. 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O LACERDA


Era o funcionário mais estranho que conheci. Quantos anos teria? Trinta? Quarenta? Mais?
Magríssimo, esquelético mesmo, as faces encovadas de onde lhe sobressaiam as maças do rosto, quase a romper a pele macilenta. O cabelo preto de azeviche, empastado de brilhantina barata, parecia colado à cabeça. As orelhas de abano pareciam ter sido cosidas com agulha ferrugenta dos dois lados da cabeça, prontas a despegarem-se ao menor sopro de vento.Como numa lúgrube cruzeta, adejavam as roupas muito largas, de tons pretos ou cinzentos.
Falava pausadamente para disfarçar a gaguez. Lia e relia a papelada que os alunos lhe entregavam na secretaria do liceu para se matricularem, pagarem as propinas ou requererem exames, na demanda ínfrene de descortinar algum formulário incompleto ou mal preenchido.
Quando descobria algum erro, adoptava uma postura vencedora,altaneira, que o seu metro e sessenta empinado pelo tacão alto dos sapatos de fivela lhe permitia, e vociferava lentamente, em voz pastosa, fitando o aluno por trás dos seus óculos de aros grossos de imitação de tartaruga:
- Olha lá rapazote, aqui no Liceu não se admitem analfabetos. Vai para um colégio qualquer e volta cá só quando já souberes preencher os papéis.

Puxava a manga de alpaca para o cotovelo, engordurada de meses a fio sem ser lavada e pegava nos papéis do aluno que se seguia na fila.
Mas que homem era aquele, quem era de facto o burocrata a debater-se imundo na camisa de forças do rígido normativo da secretaria, humilhado às escondidas pela rapaziada? Será que acalentava algum sonho? Qualquer homem os tem. E ele? Tinha algum? Ou alimentava-se apenas da autoridade efémera sobre os alunos que as regras do liceu lhe conferiam? Bastar-lhe-ia comer o pó dos processos escolares que enchiam as paredes e as secretárias?

Não! Viemos a saber que não!
Figura caricatural, dentro do esqueleto que lhe furava a camisa passajada, o coração do Lacerda também amava.
Também sonhava! Aquela mulher de lábios grossos, carnudos, de pernas roliças, seios fartos a saltarem pelo decote da blusa às flores, a quase rebentarem os botões de osso de javali que a cingiam ao corpo, trazia-o ensandecido. Fora a única mulher que conhecera em toda a sua vida que não se ria dele, que lhe sorria meiga, que o escutava atenta, que lhe sussurrava palavras de amor e que gemia nos seus braços esqueléticos, na penumbra do quarto daquele primeiro andar onde todos os dias se ia encontrar com ela.

Ultimamente, o Lacerda pedia por vezes dinheiro emprestado aos colegas, porque aquele amor louco lhe estava a esgotar as economias.Nem parecia o mesmo! A partir do meio da tarde, ansiava que os ponteiros do relógio ganhassem maior velocidade, para sair do trabalho, encharcar-se em perfume reles que empestava tudo à sua volta, apanhar o eléctrico na Alameda e depois apear-se em andamento perto da Praça 8 de Maio. 

Era vê-lo então a embrenhar-se nas vielas da Baixa, chocalhando os ossos, em passo estugado, os tacões de pau de cinco centímetros já descambados, a baterem ritmados na calçada. Chegado, subia dois a dois os estreitos degraus de madeira carunchosa até ao primeiro andar.

Recobrava o fôlego, abria os braços em direcção à sua amada, deixava antever os dentes amarelos num arremedo de sorriso, num esgar cadavérico e articulava melancolicamente, disfarçando a gaguez:
- Meu amor! Vamos?
- A Carmen, assim era o seu nome, espanhola de Cáceres que imigrara há um bom par de anos para trabalhar em Coimbra, sorria-lhe, passava-lhe a mão pelo cabelo oleoso e levava-o pela mão ossuda, como a um menino, para o quarto daquele nº 13 da Rua Direita…

Rui Felicio 

terça-feira, 5 de junho de 2012

REGRESSO À GUINÉ



Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.
Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.
O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.
Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.
O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?
Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar,  e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!
A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.
Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo.
Com alguém que era um intruso em terra alheia!
No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.
Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

NOTA DE RODAPÉ:
Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:
A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo.  Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.
A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.
Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011
( Ex-Alf.Mil – CCAÇ 2405 )

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A SENHORA FIDALGA


Desconhecia-se-lhe a genealogia, mas o seu porte altivo, raiando às vezes a sobranceria, fazia com que os camponeses se desbarretassem e se curvassem à sua passagem, cumprimentando-a reverentemente  e apelidando-a de Senhora Fidalga.
Depois de lhe terem morrido os pais em anos sucessivos, vivia sozinha no enorme casarão apalaçado, fronteiro ao Mondego, antes de se chegar à Portela, rodeado pela quinta cheia de pomares, bungavilias, madressilvas  e um extenso vinhedo. Solteira, com quarenta anos feitos há pouco, nunca constou que se tivesse enleado nos amores de algum namorado ou amante.
Caminhou pelo corredor, atravessou o salão de jantar, aproximou-se da gaiola pendurada junto a uma janela, meteu a mão pela frincha da grade entreaberta e pegou no minúsculo canário que afagou docemente. Repetindo uma rotina diária, falou com ele, chamou-lhe meu bijou, enfiou-o entre os seios e foi até ao varandim, ainda lambido pelos derradeiros raios de sol do crepúsculo.
Chamou o capataz que, por baixo, alinhava as ferramentas agrícolas que o pessoal lhe vinha entregando no dealbar de mais um dia de labuta no campo.
- Faça Vossa Senhoria o favor de dizer, Senhora Fidalga, respondeu o Francisco olhando para cima.
A atitude submissa do Francisco contrastava com o seu corpo possante, entroncado, musculoso, de homem jovem de trinta e poucos anos, bem parecido, nascido e criado na quinta onde também já tinham servido os seus pais enquanto foram vivos.
- Vem cá acima e traz uma mão cheia de aveia para dares de comer ao canário.
Passado um bocado, o Francisco bateu à porta da sala pedindo licença para entrar, trazendo na mão fechada a comida para o pássaro. Dirigiu-se à gaiola e, admirado, viu que estava vazia.
A fidalga, de olhos mortiços como ele nunca antes tinha visto, meio deitada no longo sofá, deslizou devagar a alva mão pelo veludo vermelho e macio do cadeirão e, em voz cava, disse ao Francisco:
- Anda cá, homem! O bijou está aqui!
Atónito, o Francisco viu-a abrir o generoso decote, entrevendo lá dentro as penas amareladas do pássaro que se espanejava, irrequieto, entre as fartas carnes da Senhora Fidalga.
- Estás à espera de quê, homem? Vá, traz cá a comida depressa, que o meu bijou está esfomeado.

Desde então, os camponeses que trabalhavam na quinta comentavam entre eles, à boca pequena:
- O raio do canário anda gordo! Pudera! O Sr. Francisco dá-lhe de comer várias vezes ao dia…

Rui Felício