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sexta-feira, 29 de março de 2013

FAZER AMOR DENTRO DE ÁGUA



Hoje de manhã a maré estava baixa, como eu gosto.

É quando, durante umas horas, o mar nos revela parte dos segredos de uma vida esfusiante que se abriga nas rochas, onde a erosão milenar foi escavando túneis e grutas que protegem os seres marinhos dos seus predadores.

Serpenteando, a água límpida, num ondular repetitivo, mas nunca repetido, vai banhando as rochas descobertas, as algas, os musgos, os ouriços, os moluscos, os pequenos peixes, até os insectos.

A mim, acariciava-me as pernas meio submersas, intrusas…

Involuntariamente, fixo o meu olhar num casal, mais à frente, recoberto pela água, entregue à loucura de um apertado abraço.

Bolhas de ar subiam velozes, desfazendo-se em espuma à tona de água, como capitoso champanhe.

Presenciar a beleza de um acto de amor, em invulgar ambiente aquático, afastou os pruridos que a razão me aconselhava. Foi mais forte do que eu, invadir a privacidade daqueles jovens…

A refractária ondulação permitia-me adivinhar, mais do que realmente ver, deformadas, as imagens dos braços enleados, das pernas entrelaçadas, das bocas coladas, dos corpos fundidos num só.

Num frenesim!

Uma e outra vez a água revolteava-se quando os corpos daqueles jovens surgiam à tona, já indiferentes aos olhares estranhos, perto do êxtase.

Subitamente, a calmaria…

Ainda os vi, de braços enlaçados, deslizarem suavemente, lado a lado, afastando-se, saciados, em direcção a uma rocha mais longínqua.

Amanhã vou estar de novo naquela praia. Gostava de poder agradecer àqueles dois jovens polvos, por me terem mostrado a beleza do amor dentro de água…

Rui Felicio

quinta-feira, 28 de março de 2013

AMOLA TESOURAS


A minha memória , entre várias figuras que percorriam as ruas do Bairro, guarda ainda a imagem do amola-tesouras.
Com a boca deslizando numa gaita de beiços, primeiro num sentido e depois no contrário, percorria totalmente a escala musical, dela extraindo uma melodia estridente e inconfundível.
Era desta forma que anunciava a sua própria presença, chamando as donas de casa que tivessem facas e tesouras para afiar, panelas e tachos rotos para remendar, ou mesmo pratos rachados para lhes serem colocados “
gatos
”.
Dizia-se que a sua vinda previa chuva iminente. A profecia muitas vezes batia certo, apenas porque era no inverno que o amola-tesouras aparecia com maior frequência. Por causa dos consertos nos guarda-chuvas, que também fazia...
O seu principal instrumento de trabalho era constituído por uma roda feita de pedra de esmeril, que fazia rodar a grande velocidade, impulsionando um pedal acoplado à roda de bicicleta que àquela estava ligada por uma correia de transmissão em cabedal.
Fascinava-me observar o trabalho de afiar as facas e as tesouras. Da pedra de esmeril em contacto com o metal, soltava-se uma miríade de faíscas que me lembravam os fogos de artifício que eu tinha visto nas festas da Rainha Santa.
E, a tantos anos de distância, dou por mim a reflectir como os tempos mudaram de maneira tão acentuada.
Hoje em dia, os hábitos de consumo que nos foram sendo incutidos, tornam quase impensável mandar consertar utensílios e ferramentas do nosso quotidiano.
Se um guarda-chuva se estraga, deitamos fora e compramos outro na loja dos chineses.
Se as lâminas da faca ou da tesoura embotaram, se o prato rachou, se o tacho furou, fazemos a mesma coisa.

Displicentes, apressados, nós próprios também quase descartáveis...
Rui Felício


CARTA ABERTA DE RUI FELICIO AO DR. VITOR GASPAR


 ( Um contributo para a reforma do Estado )

Excelência,

Não o escondo, faço parte do enorme grupo de quantos o têm criticado, inventado anedotas a seu respeito, muitas vezes caluniado, insultado, enxovalhado, imitando o seu discurso arrastado, sonolento, para lhe denegrirem a patética imagem, por entre piadas obscenas e risota alvar.
Arrependo-me, porém, de ter alinhado a minha voz com as de milhares, senão de milhões de portugueses.

Consciencializo-me agora, depois de seriamente ter reflectido sobre o calamitoso estado em que lhe deixaram as contas públicas e da imensa tarefa de as endireitar que lhe sobrecarrega os frágeis ombros.

V.Exª não merece as sistemáticas críticas a roçar a grosseria que diariamente lhe são dirigidas nas conversas de café, nas redes sociais, na imprensa, na rádio e na televisão. São criticas despojadas de conteúdo, de substância, infundadas, feitas malevolamente pelos cidadãos que, em vez da critica mordaz e superficial, deviam era sugerir caminhos, apontar soluções, ajudar e colaborar na repartição dos sacrifícios necessários para impedir o definhamento do Estado que afinal somos todos nós.

Nessa linha de pensamento e na obrigação cívica que me incumbe, venho dar o meu contributo para a resolução do desequilíbrio financeiro do Estado que está na origem de todos os males que o afligem. Que nos afligem…

Portugal é dos países mais envelhecidos do mundo, com uma pirâmide etária a caminho da perigosa inversão, crescendo desmesuradamente no seu topo e diminuindo na sua base.
Para agravar a situação, a esperança média de vida tem vindo a aumentar situando-se na casa dos 80 anos, quando em África, por exemplo, nem aos cinquenta chega. Para cúmulo, o índice de natalidade do nosso país é dos mais baixos da Europa e o de mortalidade igualmente.
Por outro lado, todas as estatísticas, todos os estudos científicos, demonstram à saciedade, sem lugar ou margem para dúvidas, que os custos com a saúde pública progridem geométricamente com o avançar da idade das pessoas. Quanto mais velhos vão ficando os cidadãos, mais recursos são utilizados pelo Estado para lhes tratar a saúde e os irem mantendo vivos. E em linha paralela ascendente, constata-se que menos riqueza vão produzindo, por incapacidade, por doença, por velhice.
Ou seja, ao envelhecermos, criamos menos ou nenhuma riqueza e consumimos mais recursos, gastamos mais dinheiro ao Estado.
São factos, demonstrados, inquestionáveis e indesmentíveis.

Temos impostos para quase tudo. Directos sobre os rendimentos do trabalho, prediais, de capitais, sobre o património, e indirectos sobre o consumo, sobre as transmissões imobiliárias e outros.
Mas não temos nenhum que restabeleça o equilíbrio da mais pesada de todas as rubricas do orçamento do Estado, que é a da Saúde Pública.

Proponho por isso um novo e quiçá definitivo imposto que por fim saneará esse perpétuo desequilíbrio que advém de algo tão simples e de fácil controle como é a idade de cada um.

Chamar-lhe-emos de ISI ( Imposto sobre a Idade ), sigla que, suponho não está ainda a ser utilizada em nenhum dos muitos e variados outros impostos e taxas que o Estado lançou.
Embora sujeito naturalmente a estudos e projecções técnicas para calcular o volume de receitas a arrecadar, sugiro, como base de trabalho, que passem e reter-se na fonte, a título de ISI, relativamente a todos os tipos de rendimentos, incluindo os das pensões e de forma progressiva:

Sujeitos passivos: todos os cidadãos com 40 ou mais anos de idade.
Taxa aplicável: 10% no ano em que completam 40 anos, actualizada sucessivamente de um por cento, em cada aniversário seguinte.
Desta forma, um cidadão que viva 90 anos, terminará a sua vida sujeito a uma taxa de retenção de ISI de 60%.
O que me parece de inteira justiça e equidade, como agora está na moda dizer-se e atendendo ao que ficou exposto.

Certo de que acolherá de braços abertos este verdadeiro ovo de Colombo que, desinteressadamente lhe ofereço, subscrevo-me com os protestos da mais elevada admiração
De V.Exª
Atentamente
Rui Felicio

NB: Como autor desta proposta, peço que o meu nome enfileire ao lado de todos os que seguramente irão ser contemplados com isenções excepcionais na lei que vier a ser elaborada.

quarta-feira, 27 de março de 2013

VIDA FÁCIL?


Nunca conheceu a mãe que a pariu.

Deixou-a na Roda ainda ela tinha só uma semana de vida.
As freiras diziam que a sua verdadeira mãe tinha sido uma prostituta de Coimbra que não a podia criar e que a abandonou na Roda.

Para que alguém tomasse conta de si, as bondosas religiosas entregaram-na a uma Senhora rica, dona de uma quinta nos arredores de São João do Campo a quem ela se habituou a chamar mãe.
Aos 7 anos de idade já mourejava de sol a sol no amanho da terra juntamente com os camponeses que a Senhora contratava para as sementeiras e para as colheitas.
À hora da sesta levava-lhes água fresca, azeitonas, broa e uma cabaça de vinho.
Quando debaixo da roupa de chita começaram a despontar-lhe duas colinas e as ancas se lhe iam alargando, aqueles homens rudes atiravam-lhe dichotes obscenos, passavam-lhe as mãos ásperas e gretadas pelas pernas, pelos seios púberes, pelo rosto de adolescente.
Quanto mais ela se esquivava, quanto mais rispida era com eles, mais eles riam, mais ordinários se tornavam.

Um dia, tinha a miúda acabado de fazer 13 anos, oculto por detrás duma fiada de trepadeiras junto às pocilgas dos bácoros, o Granadeiro, capataz da quinta, puxou-a por um braço, tapou-lhe a boca com a mão crispada para ela não gritar e arrastou-a para cima de um monte de palha dentro da pocilga.
Debatendo-se sob o peso do seu corpo de homem possante, sentiu-o a entrar dentro de si, rasgando-a, desfrutando a sua virgindade. Saciado, o capataz deixou-a para ali, dorida, revoltada.
A dona da quinta, quando soube, ficou furiosa, chamou-a e disse-lhe que ela era outra igual à sua mãe e que, a partir daquele dia não a queria mais em sua casa.
O Granadeiro levou-a para Coimbra arranjando-lhe um quarto em casa do seu amigo Gilberto, que a acolheu.
O Gilberto andava sempre impecavelmente vestido, o cabelo bem penteado, os sapatos castanhos debruados a branco ofuscavam de brilho.

Acarinhou-a, dava-lhe prendas, levava-a a passear.
Apresentou-a a amigos seus, incentivando-a a tratá-los bem, a ser-lhes prestável em troca de ofertas ou dinheiro que eles lhe dessem, para assim ajudar a comparticipar nas despesas que ele estava a ter com ela.


A rapariga cresceu e acabou por se apaixonar pelo Gilberto. É certo que ele às vezes lhe batia quando ela tentava recusar-se a estar com algum dos seus amigos, mas o amor dela era mais forte e perdoava-lhe tudo quando ele a seguir a enchia de carinhos, quando o seu abraço e os seus beijos lhe aqueciam a alma, quando as suas palavras ternas a estimulavam e inundavam de prazer.
Já não havia dia em que o Gilberto não lhe ralhasse, quando ela lhe entregava o dinheiro que tinha recebido e que ele achava sempre pouco. Gritava-lhe, batia-lhe, chamava-lhe desgraçada sem eira nem beira que nem era capaz de ganhar o sustento e o tecto que ele lhe dava.


Um dia o Gilberto, depois de uma violenta discussão, expulsou de casa aquela já mulher, precocemente envelhecida, que passou a deambular nas noites frias pela Av. Fernão de Magalhães, oferecendo-se aos homens que ainda se dignassem dirigir-lhe um olhar.


Passado um ano, descuidou-se e engravidou.
Foi depositar na Roda, embrulhada num saco de plástico, a criança que pariu na mata do Choupal.

Rui Felício



segunda-feira, 25 de março de 2013

SIM, ELES FALAM...


 
Em dias de festa trazem nas lapelas, irrepreensivelmente engomadas, rosas mártires arrancadas a golpes de navalha dos braços das plantas suas mães, quando desabrochavam de desejo, quando abriam o seu pólen aos beijos das abelhas.
Não percebem que o escorrer da seiva é a sua morte, que o veludo das suas pétalas ficará ressequido sem ela, que o caixote do lixo imundo acabará por ser o seu destino em poucas horas.
Para alimentarem fábricas de aglomerados de madeira, mutilam as árvores, deformam-nas, matam-nas até.
Enclausuram em campos de concentração plastificados, certas plantas que fenecem saudosas do humus, do sol e da chuva.
Arrasam montes, entulham vales, e destroem nesse frenesim o habitat de milhões de seres queo equilibram a Natureza, para construirem gaiolas onde depois se exilam, vivem e dormem, calafetados do frio, do barulho do vento, dos cheiros do rosmaninho, das flores silvestres, da
terra molhada pela chuva.
Perfuram o solo e extraem das profundezas, até à sua exaustão, os hidrocarbonetos com que alimentam as latas com rodas em que se transportam.
Um dia a terra será oca como uma casca de ovo vazia e calva como a cabeça de um sábio,
Pouco falta para que os rios e os mares se tornem focos de doenças mortíferas, à medida que vão recebendo os detritos venenosos que eles fabricam e produzem.

O olhar da mulher na agonia da infertilidade doentia, deixará de ser o olhar do amor e passará a reflectir, baço, a aflição do naufrágio.
Na desmesurada ânsia do lucro, produzirão cada vez mais bens inúteis incentivando o seu consumo escusado.
Para potenciarem o escoamento da sua desenfreada fabricação, emprestarão a altos juros, o dinheiro necessário para que outros comprem as suas inutilidades, ganhando com a venda e ganhando com o crédito.

Inventarão dores para venderem anestésicos, desencadearão guerras para venderem armas, cultivarão plantas psicotrópicas, para venderem droga, construirão hospitais para cobrarem altos preços na cura de drogados.
Transformarão a Terra na catedral do sofrimento como fim último da farsa sinistra que representam.
E dizem-se civilizados! E consideram-se racionais! E, pedantes, atribuem-se o epíteto de raça superior!
.........................

Assim falava o Junior, velho e sábio cão pastor da Serra da Estrela, discorrendo sobre a estupidez humana.
Escutava-o atenta e deleitada, a sua amiga Vivaça, esperta podenga que de vez em quando latia e abanava o rabo, em sinal de assentimento.

Sim, eles falam. Os cães falam!
Assim os soubéssemos entender...


Rui Felicio

sábado, 23 de março de 2013

PASSOU-SE EM COIMBRA


Na Real República Rapó Taxo tive grandes amigos. Frequentava-a com frequência, muitas vezes para uns copos num anexo da vivenda transformado em adega, menos vezes para estudar com dois colegas que ali viviam.
Certo dia, estava o Guedes a contar à malta que o ouvia atentamente, que tinha engatado uma matrona na Alta que morava numa ruela por trás da Faculdade de Farmácia.
- Uma mulher na casa dos 40 anos, boa, matulona? – perguntou o Noronha
- Sim, ela já é um bocado descriada, mas é boa, de carnes fartas. – assentiu o Guedes.
- Chama-se Bina? – interpelou-o o Noronha, já desconfiado.
- Essa mesmo!  Só me deixa lá ir da parte da manhã, que a gaja diz que à tarde tem de trabalhar e que à noite vai lá a casa um velho sexagenário que é quem a sustenta.  De mim é que ela nunca levou um tostão. Mas como é que sabes?
- É que a mim ela só me deixa lá ir de tarde, porque de manhã tem um emprego e à noite tem um velho sexagenário que lhe vai dando uns cobres para a sua sobrevivência. Mas olha que a mesada que recebo lá de Mangualde quase nem chega para comer e por isso também nunca lhe dei nada. Além do meu corpo, claro!
As gargalhadas dos circunstantes estalaram e o Guedes e o Noronha não tiveram outro remédio senão admitirem, com risos amarelos,  que andavam os dois a ser enganados pela Bina.
Mas um nosso colega houve que em vez de rir, tinha metido a cabeça entre as mãos e as lágrimas corriam-lhe pela cara. Era o Varela, rapaz bem parecido, um tanto ingénuo, caloiro chegado nesse ano a Coimbra vindo de Trás-Os-Montes.
- Eh pá, o que é que se passa. Estás doente?, perguntou um.
Eu sou o sexagenário que vai lá à noite e que a sustenta, foi a resposta sussurrada do Varela...

Rui Felicio

BARRIGA DE ALUGUER


Em Portugal não é legalmente permitida aquilo a que se chama a “barriga de aluguer”, situação que, porém, é admitida nalguns países.

Trata-se de uma forma de possibilitar a gestação de filhos aos casais que, por infertilidade, por algum impedimento ou por outras quaisquer razões, os não conseguem ter.



Mas se o fosse, isto poderia ter-se passado:

O Simão e a sua mulher Marta, casados há vários anos, não conseguiam ter filhos. Era para os dois um enorme desgosto com o qual não se conformavam. O médico, depois de exaustivos exames a ambos, concluiu que a Marta jamais poderia engravidar.


A Vanessa disponibilizou-se para gerar um filho do Simão através de inseminação artificial. Seria “barriga de aluguer”, sob condições a negociar.


O Simão pagar-lhe-ia 3 mil euros no momento do parto, bem como os custos com a alimentação e com um seguro de saúde, enquanto durasse a gravidez.

Passaram-se nove meses e chegou o dia do nascimento. O bebé era a cara chapada do Simão que estava radiante por ter finalmente um filho, um rapagão forte e bonito.

Apressou-se, ainda na maternidade, a passar um cheque à Vanessa, da quantia combinada.


Estranhamente ela recusou o cheque, dizendo-lhe que por nenhum dinheiro abdicaria do bébé.


Afinal, ele era seu filho, ela tinha começado a amá-lo durante o tempo da gravidez e agora que o tinha ali nos seus braços, que o amamentava, estava segura de que não o entregaria fosse a quem fosse.

O Simão argumentou que, para além do acordo feito nove meses antes, ele era o pai biológico da criança!

- Ora ainda bem que diz isso diante de testemunhas, retorquiu a Vanessa, apontando as duas enfermeiras presentes no quarto da maternidade...

Na qualidade de mãe solteira, com o meu filho à minha guarda, vou intentar acção de paternidade contra si, para que me pague uma pensão de alimentos até ele atingir a maioridade.

Rui Felicio

O DIÁRIO DO DR. JOSÉ DE ALENCAR



Dia 07 de Novembro de 2011
- Que horas são?
- São onze, pai!
- O tempo passa, já jantámos há duas horas! Mas ainda há tempo para conversarmos.
- Há tempo como? Há sempre tempo...
- Hoje não. Daqui a uma hora começa o primeiro dia da tua nova vida. E tens que te levantar cedo.
- Tem razão, amanhã começo a trabalhar no Ministério.
- És jovem, com as habilitações académicas adequadas, o teu nome José de Alencar mostra a estirpe e a linhagem da nossa ancestral Família. Mas tens o ardor e os improvisos próprios dos teus vinte e cinco anos, que deves habituar-te a conter e a disfarçar.
- Não será fácil, pai. Não gosto de ocultar ou conter os meus princípios.
- Deixa-te disso! Não irás longe assim. Por isso te aconselho. Se quiseres singrar dá tempo ao tempo. Ri-te às gargalhadas das piadas insonsas do ministro. Deste ou de outro que vier a seguir. Aplaude as suas decisões estúpidas. Gaba-lhe a gravata horrorosa às bolas que ele ata sem jeito à volta do pescoço por baixo do colarinho da camisa aos quadrados que parece ter comprado na feira do relógio.
- Mas se exagero ele vai desconfiar que estou a gozar com ele...
- Isso não acontecerá! Desde novo que se habituou a que só lhe apontassem os méritos. Na escola, na universidade, como aluno e depois como professor e mais tarde no Banco para onde entrou directamente para o alto cargo de director. Não sabe nada da vida, mas como obteve altas classificações, e foi subindo na hierarquia da política desde tenra idade, nunca ninguém lhe apontou falhas. E aqueles que tiveram a desdita de o fazer foi-os afastando e sucessivamente empurrando para a rua.
- E se me for pedida a minha opinião pessoal sobre um qualquer assunto?
- Dá-me um exemplo, para ser mais fácil explicar-te.
- Bom, suponhamos que ele me pergunta o que eu acho sobre o corte dos subsídios de férias e de Natal, de que agora tanto se fala.
- Nunca digas nada sem te fundamentares em opiniões alheias. Neste caso concreto, dizes que o primeiro-ministro prometeu em campanha eleitoral que jamais sacrificaria ou reduziria o poder de compra dos trabalhadores e dos pensionistas, mas que, chegado ao governo tinha descoberto um buraco orçamental oculto colossal que os portugueses iriam ser infelizmente obrigados a colmatar. E que o líder da oposição, em nome da Pátria, até se iria abster na votação dessa decisão, viabilizando-a, embora achasse que se devia reduzir esse sacrifício a cinquenta por cento. E que até mesmo o Presidente da República tinha dito que em nome dessa mesma sua Pátria adorada, não iria vetar essa medida, embora tivesse muita pena dos sacrifícios dos seus compatriotas. E que até mesmo um dos ministros mais mediáticos do governo, que tanto está na América do Sul, em Madrid, na Argélia ou em Lisboa em directo para a televisão, concordava que essa medida tão gravosa pudesse ser objecto de negociações com a oposição, embora pensasse que o governo não tinha folga para tal negociação.
- Sim, compreendo, pai...Mas se mesmo assim, o ministro insistir para eu dar a minha própria opinião?
 - Dir-lhe-ás que confias na sua superior inteligência que saberá, melhor do que tu, tirar a mediatriz de tão abalizadas opiniões e decidir segundo o superior interesse nacional. E que tu, aplaudirás, sem reservas, seja qual for a sua sábia decisão.
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Este é o diálogo que Sua Excelência, o Presidente da República das Bananas, Dr. José de Alencar, respigou do seu diário, neste dia 07 de Novembro de 2041passados exactamente 30 anos depois de o ter escrito, para nele meditar antes do acto solene da celebração da sua recente eleição para o mais alto cargo do Estado.
Escrito em 07/11/2041

Rui Felicio

quinta-feira, 21 de março de 2013

NOS BRAÇOS DO POETA (NO DIA DA POESIA)


Aos 18 anos, o Jaime concluiu o 5º ano do liceu e começou a trabalhar na secretaria dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Outros tempos aqueles,  em que um mínimo de habilitações académicas eram passaporte garantido para arranjar emprego.
Como acontece com a maior parte dos artistas e dos poetas, o Jaime era exageradamente tímido. Dotado de uma enorme sensibilidade, sabia transmiti-la, como poucos, para as inúmeras, belas e bem construídas poesias que diariamente escrevia ou rascunhava nos guardanapos de papel do café Piolho, do Oásis ou do Mónaco, mas terrivelmente inseguro como era, guardava-as para si às escondidas de todos.
Relutante, só as mostrava aos amigos mais próximos, sempre com um ar receoso da crítica ou dos gracejos que sobre elas pudessem fazer.
O seu ar habitualmente melancólico tinha-se tornado desde há uns tempos, mais abatido e ansioso do que o costume, o que levou o Vitor, seu colega de emprego, extrovertido e boémio, a perguntar-lhe se andava doente, se tinha algum problema, ao que o Jaime respondeu, hesitante e envergonhado, que andava loucamente apaixonado pela enfermeira Natália, mas que não tinha coragem de lhe declarar o seu amor.
  
O Vitor assobiou baixinho, estalou os dedos e sentenciou:
- Eh pá, tu não te assoas a qualquer guardanapo! Essa miúda é um espanto, boa como o milho, mas olha que não é fácil aceder-lhe! Porque é que não lhe escreves uns poemas? Tu tens jeito e não há mulher que não amoleça quando lhe dão flores ou lhe fazem uns versos bonitos.
O Jaime argumentou que não seria capaz de chegar ao pé dela e, sem mais nem menos, dar-lhe um papel com poesias suas. Aliás já escrevera várias a pensar nela, no silêncio do seu quarto, mas faltava-lhe a coragem para lhas mostrar.
O Vitor, autoritário, ordenou-lhe que trouxesse um desse poemas no dia seguinte que ele próprio se encarregaria de lho entregar. O Jaime agradeceu-lhe reconhecido a amizade e, a partir daí, quase dia sim dia não entregava ao Vitor uma nova poesia dedicada à sua amada... que este religiosamente levava à Natália.
O Jaime, ao fim de mais de um mês perguntou ao amigo se ela não estaria já disponível para um encontro, agora que o ia conhecendo através dos seus poemas, ao que o Vitor, dando-lhe uma palmada nas costas, lhe retorquiu:
- Calma! Está quase, pá, está quase...Faz lá mais uns versos que ela não tarda a cair...
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Subitamente, o Vitor e a enfermeira foram transferidos quase na mesma altura para o Hospital dos Capuchos em Lisboa. O Jaime nunca mais soube nada deles e acabou por esquecer aquele amor que o tinha mortificado.
Um dia, no apartamento de Oeiras onde viviam, a Natália olhou o Vitor e confessou-lhe que se apaixonara por ele, mais pelos belos poemas que ele lhe oferecia durante o namoro, do que por outra qualquer razão.

Mas andava triste porque, desde que se tinham casado, ele nunca mais lhe tinha feito nenhuma poesia!
- Faz-me um poema daqueles que só tu sabes fazer, meu amor. Fazes? Prometes?

O Vitor desculpou-se. Explicou-lhe que, desde que vieram para Lisboa tinha perdido a inspiração...

Rui Felicio

sábado, 16 de março de 2013

UMA QUESTÃO DE FÉ


Na conferência de Imprensa dada pelo ministro Vitor Gaspar e alguns secretários de Estado, uma linha comum ligou os seus herméticos discursos.
Nenhuma das perguntas feitas pelos jornalistas presentes obteve qualquer resposta objectiva e concreta, refugiando-se os conferentes em lugares comuns, frases feitas, manifestações de intenção e fé, muita fé.

Senão vejamos:

Às perguntas sobre se o governo finalmente admitia que tinha falhado nas metas do défice que tinha declarado há um ano, Vitor Gaspar refugiou-se na enunciação dos vários conceitos de défice estrutural, para finalmente declarar “ex catedra” que tinha fé, muita fé, em que os objectivos iam ser cumpridos.
Ou seja, tudo se resume a uma questão de fé...

Questionado sobre quantos trabalhadores da Função Pública e da RTP iam ser despedidos, o secretário de Estado Helder Rosalino disse que iria reunir-se para a semana com os parceiros sociais e que, portanto, não estava ainda em condições de responder à pergunta antes disso.
Mas afirmou que tinha muita esperança e fé em que tudo iria correr bem.
Ou seja, tudo se resume a uma questão de fé...

Interrogado sobre se a propalada reforma do Estado consistia somente em sacar mais 4 mil milhões aos depauperados bolsos dos contribuintes, o secretário de Estado Carlos Moedas, especialista em modelos Excel, disse que acreditava e tinha esperança que os esforços dos portugueses seriam recompensados em prazo curto.
Ou seja, tudo se resume a uma questão de fé...

Em resposta à pergunta sobre se terão valido a pena tantos sacrificios do povo, quando afinal, o governo nem sequer conseguiu reduzir o défice orçamental a que se tinha proposto e que considerava ser essencial para o chamado ajustamento das finanças de Portugal, o secretário de Estado Luis Morais Sarmento alegou que estava confiante em que os objectivos serão cumpridos graças ao comportamento louvável dos portugueses.
Ou seja, tudo se resume a uma questão de fé...

Com esta equipa, liderada por um não menos confiante primeiro-ministro que em declarações à televisão corroborou todas estas palavrosas e ocas declarações, sou obrigado a concluir que tudo se resume a uma questão de fé...

Ou seja, a menos que expulsemos esta gente rapidamente, devemos, com abertura de espírito, respeitar a sua fé e as suas convicções.
Que cada um deles fique com as suas fezes!


Rui Felicio