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segunda-feira, 18 de junho de 2012

CAÇADOR VEGETARIANO



Enchidos, chispe, toucinho, mão de vaca, entrecosto eram os seus alimentos preferidos.
Uma boa feijoada de lebre, uma perdiz estufada, um pombo na púcara, uns tordos fritos em banha de porco também o faziam salivar, mas só os podia degustar na época venatória.
Quando abria a caça, o Melo levantava-se de madrugada, municiava-se e equipava-se como quem vai para a guerra, palmilhava veredas e montes, emboscava-se, camuflava-se è espera do animal que lhe passasse no perímetro de tiro. Mais do que abater as vítimas, era o acto de caçar que o viciava. Estava-lhe na massa do sangue, sentia um frémito a percorrer-lhe o corpo, um arrepio, um prazer mórbido de matar. Sentia-se um ser poderoso quando empunhava a espingarda. Era a forma que encontrava de exercer a vingança sobre seres indefesos, dos maus tratos que sofria no dia a dia.
O médico um dia deu-lhe a má notícia. A sua vida estava por um fio! Mas ainda ia a tempo de remediar o mal se passasse a alimentar-se de forma racional. Proibiu-lhe as carnes, os enchidos, as gorduras animais. Preferencialmente, devia alimentar-se de legumes, de frutas, de vegetais!
Assustado, o Melo decidiu que passaria a ser vegetariano. Jamais voltaria a comer carne nem peixe!
Mas o que nunca deixaria de ser era caçador! Se não podia comer carne, passaria a ser um caçador vegetariano.
Até tinha vantagens, dizia ele de si para si. Porque não existe época venatória para se caçarem vegetais.
Agora, era raro o dia que não o vissem sair de manhã cedo, de caçadeira ao ombro, vestido de camuflado, cartucheiras à cintura, em direcção às hortas e pomares dos arredores.
 À hora de almoço regressava, orgulhoso, com tomates, alfaces, pepinos, pimentos, couves, laranjas, pêssegos, tudo pendurado dos ilhoses do cinturão.
Certa vez, ao fim da tarde no café, numa roda de amigos, perguntaram-lhe para que ia ele de caçadeira em punho, armado em caçador, para depois regressar com legumes e frutas. Os vegetais não fogem, galhofavam os amigos…
- Eu sei! respondeu o Melo. Mas quando os donos aparecem e me tentam proibir de trazer as peças de caça, eu tenho que os abater. 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O LACERDA


Era o funcionário mais estranho que conheci. Quantos anos teria? Trinta? Quarenta? Mais?
Magríssimo, esquelético mesmo, as faces encovadas de onde lhe sobressaiam as maças do rosto, quase a romper a pele macilenta. O cabelo preto de azeviche, empastado de brilhantina barata, parecia colado à cabeça. As orelhas de abano pareciam ter sido cosidas com agulha ferrugenta dos dois lados da cabeça, prontas a despegarem-se ao menor sopro de vento.Como numa lúgrube cruzeta, adejavam as roupas muito largas, de tons pretos ou cinzentos.
Falava pausadamente para disfarçar a gaguez. Lia e relia a papelada que os alunos lhe entregavam na secretaria do liceu para se matricularem, pagarem as propinas ou requererem exames, na demanda ínfrene de descortinar algum formulário incompleto ou mal preenchido.
Quando descobria algum erro, adoptava uma postura vencedora,altaneira, que o seu metro e sessenta empinado pelo tacão alto dos sapatos de fivela lhe permitia, e vociferava lentamente, em voz pastosa, fitando o aluno por trás dos seus óculos de aros grossos de imitação de tartaruga:
- Olha lá rapazote, aqui no Liceu não se admitem analfabetos. Vai para um colégio qualquer e volta cá só quando já souberes preencher os papéis.

Puxava a manga de alpaca para o cotovelo, engordurada de meses a fio sem ser lavada e pegava nos papéis do aluno que se seguia na fila.
Mas que homem era aquele, quem era de facto o burocrata a debater-se imundo na camisa de forças do rígido normativo da secretaria, humilhado às escondidas pela rapaziada? Será que acalentava algum sonho? Qualquer homem os tem. E ele? Tinha algum? Ou alimentava-se apenas da autoridade efémera sobre os alunos que as regras do liceu lhe conferiam? Bastar-lhe-ia comer o pó dos processos escolares que enchiam as paredes e as secretárias?

Não! Viemos a saber que não!
Figura caricatural, dentro do esqueleto que lhe furava a camisa passajada, o coração do Lacerda também amava.
Também sonhava! Aquela mulher de lábios grossos, carnudos, de pernas roliças, seios fartos a saltarem pelo decote da blusa às flores, a quase rebentarem os botões de osso de javali que a cingiam ao corpo, trazia-o ensandecido. Fora a única mulher que conhecera em toda a sua vida que não se ria dele, que lhe sorria meiga, que o escutava atenta, que lhe sussurrava palavras de amor e que gemia nos seus braços esqueléticos, na penumbra do quarto daquele primeiro andar onde todos os dias se ia encontrar com ela.

Ultimamente, o Lacerda pedia por vezes dinheiro emprestado aos colegas, porque aquele amor louco lhe estava a esgotar as economias.Nem parecia o mesmo! A partir do meio da tarde, ansiava que os ponteiros do relógio ganhassem maior velocidade, para sair do trabalho, encharcar-se em perfume reles que empestava tudo à sua volta, apanhar o eléctrico na Alameda e depois apear-se em andamento perto da Praça 8 de Maio. 

Era vê-lo então a embrenhar-se nas vielas da Baixa, chocalhando os ossos, em passo estugado, os tacões de pau de cinco centímetros já descambados, a baterem ritmados na calçada. Chegado, subia dois a dois os estreitos degraus de madeira carunchosa até ao primeiro andar.

Recobrava o fôlego, abria os braços em direcção à sua amada, deixava antever os dentes amarelos num arremedo de sorriso, num esgar cadavérico e articulava melancolicamente, disfarçando a gaguez:
- Meu amor! Vamos?
- A Carmen, assim era o seu nome, espanhola de Cáceres que imigrara há um bom par de anos para trabalhar em Coimbra, sorria-lhe, passava-lhe a mão pelo cabelo oleoso e levava-o pela mão ossuda, como a um menino, para o quarto daquele nº 13 da Rua Direita…

Rui Felicio 

terça-feira, 5 de junho de 2012

REGRESSO À GUINÉ



Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.
Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.
O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.
Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.
O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?
Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar,  e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!
A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.
Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo.
Com alguém que era um intruso em terra alheia!
No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.
Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

NOTA DE RODAPÉ:
Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:
A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo.  Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.
A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.
Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011
( Ex-Alf.Mil – CCAÇ 2405 )