Estava
destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.
Há
dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador.
Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo
subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de
zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio
de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de
ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava
no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de
plástico.
O
médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a
picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.
Desde
anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de
comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a
sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda
vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.
O
Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à
entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?
Resmunguei
que estava pior, mas que sim, que podia entrar, e ele curvou-se,
desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão,
disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura
alfero!
A
Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos
lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à
medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.
Senti-me
psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo.
Com
alguém que era um intruso em terra alheia!
No
dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no
Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem
lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas
injecções que me aliviaram o mal.
Passados
42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o
jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos
da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera. Disseram-me que o Samba já morreu há
muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir
buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela
e senti-as também nos meus.
Está
velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...
NOTA DE RODAPÉ:
Tento
resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às
correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos
manuais militares:
A
malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo.
Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da
proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau
ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa
bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a
transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat
perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos
mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria
sobrevivência.
A
bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do
organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o
fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase
inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres
altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.
Na
Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares
semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de
quinino.
Rui Felício - 29/06/2011
( Ex-Alf.Mil – CCAÇ 2405 )
Os destroços físicos e psicológicos da maldita guerra a que fostes obrigados a enfrentar,contada na 1ªpessoa...à distância,emociona quem te lê!
ResponderEliminarMas o reencontro,após 42 anos, com Fatwana foi afectivamente uma festa,um reconhecimento pelo cuidado de "enfermagem"primário e a identificação da linda mulher que fora,e ainda era,registo mais notado pela atitude de solidariedade que praticara... Como uma das leituras possíveis deste episódio real, parece-me saliente as alegrias e as tristezas da vida traduzem a simbologia do percurso que caminhamos dia a dia.
O povo da Guiné que conheci durante a guerra não mudou nada. Ontem como hoje, são pessoas prestáveis, solidárias, criam laços de amizade indestrutiveis. Donos de ancestrais culturas, possuem um saber que ultrapassa em muitas áreas aquilo que nas universidades europeias é ensinado.
ResponderEliminarClaro que há excepções.
Lá como cá...
Um povo que consegue criar laços de amizade indestrutíveis, é um povo que sabe o que significa a dignidade humana, que sabe perdoar, compreender, ser flexível. É gente nobre por excelência!
ResponderEliminarEste texto muito realista e bem escrito a que o Rui Felício já nos habituou, narra-nos um episódio de paludismo na sua passagem dura numa guerra inglória na Guiné, num clima muito violento para um continental, em condições sub-humanas, com doenças a espreitar. Um texto que sem pretender ser de auto-flagelação ou denúncia, nos vai, contudo, mostrando os maus bocados passados naquela terra paupérrima, num tempo de luta e de medo, mas também - e talvez mais - o reverso da medalha, exaltando o encontro com gente simples, onde a solidariedade - mesmo para com o invasor - era a tal questão de honra e dignidade, parte inerente àquela gente! Ninguém podia ficar indiferente a atitudes de tanta correcção e amor ao próximo. Rui Felício volta lá para cumprir a sua dádiva de gratidão: ver Samba e Fatwma e olhá-los bem nos olhos, passados que foram 42 anos! Mas Samba já tinha partido, só tendo ficados os olhos de Fatwma para se marejaram ao encontro dos comovidos do Rui Felício! Da horrível história da guerra na Guiné, sobrou, como adoçando-a, este pedaço de deliciosa ternura!
Obrigado Maria Mesquita.
ResponderEliminarNunca falo da guerra propriamente dita.
Prefiro falar do ambiente vivido naquelas paragens...
Tudo o que nos dói deve ser esquecido ou relegado para o subconsciente, já que voluntariamente o inconsciente é inacessível!...Devemos sempre conservar o que de bom ficou de qualquer coisa - seja ela uma guerra, uma mágoa, um desentendimento amoroso! Tudo tem o seu lado de luz e de afecto - e ai daqueles que não saibam colher de todas as situações o que elas têm de positivo e de lição! Só um coração aberto sabe perdoar e entender o que parece incompreensível!
ResponderEliminarVejo que é um espírito que sabe olhar para os outros com uma visão humana e superior! Os meus parabéns, pois, Rui Felício!
Desculpe ser tão palavrosa, mas não tenho o seu poder de síntese e de contenção da palavra!