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sexta-feira, 3 de maio de 2013

QUOTIDIANO NO CAFÉ DO SR. SILVA


Ao fundo, o balcão envidraçado pejado de bolos de arroz , jesuitas, duchaises, pasteis de nata e de Tentugal, brioches, queques...
Em cima dele num dos cantos, um pequeno barril de madeira que escondia a serpentina por onde corria a cerveja e que o Sr. Silva, dono do Café, de manhã e à tarde aconhegava com bocados poliédricos que ia partindo com uma martelo de uma enorme barra de gelo.
Na parede, destacado, um diploma de Tirador de Cerveja em nome do dono do Café.
Numa mesa, ao canto, o Afonso, o Silva, hóspede, que vivia num quarto alugado no primeiro andar, o Elói e o Munhoz, jogavam aos dados.
Ao lado, noutra mesa, o prof. Ilharco, de lunetas redondas encavalitadas na ponta do nariz, impacientava-se e intimava o Sr. Silva a ultimar o trabalho de meter gelo no barril para se vir sentar para uma partida de damas.
No meio do ruido dos dados a rebolarem estrepitosamente no tampo da mesa ao lado, o Afonso ia apontando num papel, os tentos de cada parceiro, sempre sob o olhar desconfiado do Munhoz que não se cansava de dizer que ele queria ganhar na secretaria.
O Sr. Silva, de cabelo preto arrepiado da frente para trás, entretanto já sentado em frente ao prof. Ilharco lá ia movimentando as pedras, carregando fortemente naquela que acabara de deslocar.

Fitava o Ilharco e sentenciava com ar melifluo:
- Vou lhe colocar aqui um prego!
- Ah! Você disse um prego, articulava o Ilharco pensativo, fazendo uma careta...
Na mesa ao lado, o Eloi, pausadamente, proclamava:
- Poker de ases!
E o Sr. Silva, sem despregar os olhos do tabuleiro das damas:
- Ele disse poker de ases...
E o Ilharco:
- Ah, você disse que ele disse poker de ases. Mas se não se pôe a pau, como lhe três e faço dama.
- E eu como-lhe a dama! Aqui não há pão para malucos...
- Ah. Você disse malucos...
- E o Munhoz na mesa do canto, ao mesmo tempo que chocalhava os dados dentro do copo de cabedal, antes de os lançar:
- Ah, ele disse que lhe comia a dama! Olha, fullen de reis por valetes. De mão! Aponta aí, Afonso!

Entra o Feliciano, de livros debaixo do braço:
- Sr. Silva, queria um café e um bolo.
- Tire-o. Sirva-se! O café são oito tostões e o bolo doze, respondia-lhe o Sr. Silva sem tirar os olhos do jogo das damas e estendendo a mão para receber o dinheiro.
- Vou-lhe fazer o pé de galo, dizia o Ilharco quando ficou com três damas contra uma.
E o Munhoz:
- Ele disse que lhe vai fazer o pé de galo!
Entre dentes, o Silva resmungava:
- Para isso tem de me tirar do rego.
- Ah, você não sai do rego...assim também eu, dizia o Ilharco, contrariado.
- Está de esquina! Não vale!, dizia o Afonso ao Eloi que reclamava uma sequência máxima.
- Pois, é como eu digo. O gajo ganha sempre na secretaria, berrava o Munhoz com um murro na mesa que fez o dado esquinado assentar numa das faces.
- De esquina? Qual esquina?, respondia-lhe o Eloi apontando para os dados.

Era assim o dia a dia no Café do Sr. Silva...

Rui Felicio
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5 comentários :

  1. Era exatamente assim. Apesar de eu ser mais puto, o Silva e o resto do pessoal encantavam-me com estes saudosos rituais do Café.

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  2. São muitos os saborosos episódios, contados pelo Rui Felício, vividos no Café do Silva.
    Penso que este é mesmo novo, pelo menos não me recordo dele e penso que nunca tinha sido publicado.

    Dom Rafael, estás à espera de quê para pedires ao Felício que o publique no EG?
    Um abraço.

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  3. Não conheço o café do Sr.Silva, mas a sua descrição pormenorizada, cinematográfica mesmo, levou-me a participar activamente no seu quotidiano, familiarizando-me com os personagens descritos com tanta realidade e cor que os estou a ver à minha frente, como se tivessem feito parte do meu mundo!
    Obrigada, Rui Felício, por me ter transportado ao café do Sr.Silva e feito de mim quase uma hóspede diária!...Grata por me dar a conhecer estes episódios tão característicos de certos cafés de então, que tanto podiam ser do Sr.Silva, como do S.Gomes - uma realidade bem portuguesa dos espaços familiares duma época!

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    1. As tertúlias, num tempo em que não havia computadores nem telemóveis, proliferavam nos cafés que serviam de locais de encontro, de divertimento e de debate...

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  4. O café do Sr Silva!!!Sabiam que era o Café Caravela?
    A muitas destas cenas também assisti a algumas se bem que na minha geração 8 a 10 anos mais velha do que a geração do Rui Felício,os frequentadores mais habituais eram o Rui Umbelino, o Pipa, o Lizardo,o Peres,o Folgado o Tó Gonçalves, e outros.Quando esta geração mais nova entrou em cena já me tinha ausentado para a tropa e depois a trabalhar nos CTT.
    O Professor Ilharco foi comum a estas duas gerações.Quem jogava muito às damas era o cobrador das quotas do União(não me lembro do nome) e que normalmente não tinha quem lhe ganhasse...
    Bom texto que nos faz recordar bons tempos.
    Gostei Rui Felício e vamos esperar por mais!
    Um abraço
    Viana: como deves compreender não devo pedir ao Rui para publicar no EG...

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