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quinta-feira, 25 de julho de 2013

AS PRIMEIRAS LETRAS

 
 
Ia entrar para a primeira classe em Outubro seguinte. Mas desde há uns meses que o meu pai se servia da cartilha maternal de João de Deus, para me ir ensinando as primeiras letras. Como muitos estarão recordados, este método consistia em ensinar às crianças as sonoridades dos fonemas, a importância e a intensidade tónica das vogais na formação das palavras.Começava por inserir na mente do aprendiz a correspondência dos sons com a palavra escrita.Decompunha os vocábulos em sílabas e o professor atraía a atenção da criança pronunciando a sonoridade do fonema ao mesmo tempo que apontava para as letras desenhadas na cartilha e que formavam a sílaba.Desta forma, o aluno aprendia a relacionar o som que o professor executava, com o desenho das letras que lhe correspondiam e que ele apontava.
Mesmo sem ter ido ainda à escola, já conseguia “ler” quase todas as palavras mais simples, embora em muitas delas lhes desconhecesse o verdadeiro significado.
Naquele início de Setembro íamos, a minha mãe, o meu pai e eu, acompanhados por uma grande quantidade de trouxas, malas e maletas, a caminho da Figueira da Foz passar a habitual primeira quinzena de férias numa casa alugada a uma família de pescadores na Ponte do Galante. Era uma aventura inesquecível aquela viagem de combóio que apanhávamos na Estação Velha, depois de o Adelino, nosso vizinho, nos ter até lá transportado no seu táxi, um Citroen arrastadeira que eu considerava um luxo.
Encantavam-me as portas todas a abrirem-se em cada apeadeiro, o silvo da locomotiva, o fumo da fornalha misturado com o vapor da caldeira, os bancos de ripas envernizadas, a fuligem a entrar pelas janelas abertas tisnando-nos a pele mesmo antes de a tostarmos ao sol da praia. Deliciava-me com a azáfama dos passageiros a entrar e a sair nas sucessivas estações onde a cada passo parávamos: Bencanta, Espadaneira, Formoselha e o fim da primeira grande etapa em Alfarelos. O combóio, ali, quedava-se uma boa meia hora para aguardar pelo transbordo de quem vinha de Lisboa com igual destino da cosmopolita praia da Figueira. De rodilha à cabeça, carregadas com um grande alguidar de zinco, várias mulheres cirandavam numa roda viva pela gare da estação, apregoando água fresquinha em pequenas bilhas de barro. Com um prolongado apito o Chefe da Estação dava o sinal da partida. Ouvia-se o ranger de ferros, os corpos dançavam com os solavancos das carruagens a esticarem as engrenagens que as ligavam entre si, as rodas da locomotiva patinavam nos carris luzidios e finalmente o comboio começava a ganhar lentamente velocidade.
Com a entrada de passageiros vindos do sul, a carruagem ficou à pinha. Observava em silêncio a paisagem do Vale do Mondego que ia deslizando lentamente do lado de fora, com as longas várzeas polvilhadas aqui e ali por pequenas casas que pareciam boiar na água. Passámos Verride e depois a bifurcação de Lares e o meu pai procurou explicar-me que os comboios que iam para Lisboa se desviavam ali, apontando-me a linha que ficava à nossa esquerda.
Mais à frente, na Fontela, observei o edifício da estação enquanto o comboio ali esteve parado. Lembrei-me dos ensinamentos da cartilha de João de Deus e soletrei, compenetrado, alto e bom som, as três sílabas que alguém tinha escrito a carvão em letras gordas na parede branca, por cima dos azulejos. Desconhecia-lhe o significado, mas o importante era mostrar que já sabia ler.
Antes que alguém reagisse, repeti orgulhoso a sonora palavra, mais uma ou duas vezes, martelando as silabas e apontando o dedo para a parede da estação. Depois de uns instantes de silêncio e perplexidade, os passageiros que seguiam na carruagem voltaram-se para mim. Uns, circunspectos, abanavam a cabeça, a maioria ria-se às gargalhadas.
A minha mãe chamou-me malcriado. O meu pai disse-me ao ouvido para me calar porque essa palavra era uma asneira.
Mas ninguém me explicou mais nada…
Rui Felicio

9 comentários :

  1. Um dia, num autocarro, entraram uns miúdos de cerca de 10 anos, com uma conversa desse tipo.Eu ia sentada do lado do 'corredor', com uma barriguinha de final de tempo do meu filho do meio; às tantas, depois de invocarem 1500 vezes o senhor Carvalho, um deles teve um rebate de consciência e disse para o colega:'ó pá, cuidado com o que dizes, vai aqui esta senhora...' O outro olhou para mim e respondeu-lhe: 'E depois? Se não soubesse o que é, não ia como vai!'
    Não me contive: desatei a rir com o senhor muito velhinho que ia ao meu lado...

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  2. Agora percebo que o Facebook anda muito moralista ao não te permitir publicar lá este comentário.
    Mas a história está bem apanhada...
    Mas olha que o rapaz que fez essa observação poderia estar enganado.
    A Virgem Maria por exemplo engravidou por obra e graça do Espirito Santo.
    Podia bem ter sido o teu caso...

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    1. Rui, juro pela minha virgindade que não foi o meu caso! O Espírito Santo não ia ter essa trabalheira pelo menos três vezes (uma com a Virgem Maria e pelo menos duas comigo...), era capaz de não ser muito bom para o negócio!

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  3. ahahahahahah duplo (para o Rui e para a Teresa).
    Quando tinha uns 5 anos, o meu Pai levou-me de comboio para Lisboa. Lembro-me de termos parado numa estação e o meu Pai perguntar qual seria essa estação. Eu, para mostrar ao meu Pai que sabia ler, espreitei pela janela e descobri o nome, entre azulejos:
    - Mê Pai, estamos na estação de Retretes!

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  4. Boas recordações Rui, lembto-me bem das férias onde pelo menos uma ou duas vezes, os nossos pais alugaram a casa a meias, alias um dia mostro-te fotos de todos na praia, tu muito magro e alto, a tua mae com um enorme chapeu, é uma foto muito engraçada, no teu texto só esqueceste as queixadas de Pereira e a viagem da estação até a tal casa que se fazia numa carroça tipica. Gostei de recordar estes tempos de meninos, beijinho

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    1. Mato a cabeça a pensar de quem será este comentário, embora esteja quase certo de o saber...

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  5. Que conto tão delicioso,Rui Felício, desda a cartilha de João de Deus, referência ímpar na pedagogia da leitura portuguesa, passando pela viagem de combóio a vapor, com seus encantos visuais, olfactivos e auditivos, que me trouxeram de novo à memória o meu deslumbramento nas viagens feitas até à quinta da família no Douro,igualzinha à sua, só que tendo outro rio a refrescar-me, culminando na sua eficiente aprendizagem da fonética com o orgulho da soletração da palavra mágica, mas proibida, na parede duma gare de caminho de ferro!... Há tanto de doçura, como de humor e sempre, mas sempre, o seu talento numa escrita que cativa!
    Ri-me gostosamente com a sua estória e com os acrescentos de comentários igualmente adoráveis!
    É bom este riso salutar de coisas inofensivas que nos marcaram docemente a sensibilidade.
    Riso doente, quase um esgar, é aquele que os políticos produzem em nós de pérfidos palhaços, que são!...
    Continue a fazer-nos rir dessa maneira, Rui Felício!

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  6. Os esgares que os politicos me provocam adoecem-me, agoniam-me.
    Como ontem, no fim de uma audição parlamentar à ministra das Finanças, os deputados concluiram peremptóriamente e sem margem para dúvidas:

    - Uns deram como definitivamente provado e irrefutável que a senhora ministra tinha mentido.
    - Outros, concluiram que a mesma senhora tinha falado verdade, classificando essa conclusão de irrefutável e definitiva.

    Ou seja, duas conclusões contraditórias e antagónicas e ambas definitivas e irrefutáveis!

    Como o grupo dos segundos pertencia aos clubes que vão à frente do campeonato, venceram.
    Indiferentes à verdade que aliás é, para eles, coisa de somenos.
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    ,O seu comentário, como sempre excelentemente construido, agradou-me como sempre.
    Desta vez ainda mais porque me permitiu acrescentar mais uma pincelada para dar um pouco mais nitidez ao holograma enevoado que construí a seu respeito.
    Fiquei a saber que tem família no Norte, perto do belo Douro...

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  7. Não sei qual o "holograma enovoado", que construiu sobre a Dama Misteriosa, mas vou dar-me ao luxo de o manter em interrogação e só um Poirot ou uma Miss Marple talvez fossem capazes de deslindar tal intrincado caso...
    No comentário que fiz e agora relido, cometi alguns erros de construção, que não sei como corrigir, sem ter que o eliminar!... É que, por exemplo, não era a quinta que era igualzinha à sua, mas sim a viagem em sentido oposto com os meus olhos refrescados no rio Douro e não no Mondego, que lhe pertence...
    Tudo o que descreveu no seu excelente texto, que eu também tinha feito algures num escrito meu sem o seu mérito, me trouxe de novo à memória todas as imagens gravadas das longas paragens nas pequenas gares até Mosteirô, onde saía para descer a pé uma encosta íngreme até ao rio. Aí, se o barqueiro estava da nossa margem, era só entrar no barquito, senão lançava-se o grito que ecoava naquelas terras do sossego de "Ó Barqueiro!Ó Quim!", esperávamos que chegasse a remar, atravessávamos o belo rio ainda de margens pedregosas que a barragem veio alterar e voltávamos a subir, como por uma parede acima, a outra margem até à Quinta da Ventuzela, mesmo no alto da encosta e com a mais soberba vista que me foi dado conhecer! Valia bem o esforço hercúleo para atingir o Éden da minha infância!
    Quanto aos políticos, Rui Felício, todos são irrefutáveis, irrevogáveis, irresponsáveis!...

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