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domingo, 8 de setembro de 2013

AS PEDRAS FALAM E AMAM



Por trás dela, como cenário de fundo de palco, uma enorme e grossa porta de castanho enegrecido pelo tempo, toda ouriçada de cravos de ferro pontiagudos como espinhos em lombo de dinossauro.A seus pés, sentados nos degraus da escadaria da Sé Velha, quatro homens de ar sisudo e compenetrado, envoltos em capas negras, extraiam das guitarras sons melancólicos, belos, arrepiantes, que as paredes das casas em frente devolviam chorosos, carregados de saudade.
Era a primeira vez que, na noite escura e naquele mesmo local por onde passaram os maiores nomes da canção académica, uma mulher cantava o fado de Coimbra, contra a opinião dos puristas da tradição, mas com o aplauso dos que entendem que a canção coimbrã deve evoluir e adaptar-se à sociedade estudantil actual, sem peias ou condicionalismos serôdios e ultrapassados pelo tempo.
O timbre cristalino da sua voz, a forma peculiar da interpretação, a beleza da sua elegante silhueta, enriqueceram a melodia, sem olvidar as vozes de antanho, antes melhorando-a.

Finda a serenata, os ecos das guitarras foram esmorecendo sob o pesado silêncio da noite e ela, no seu vestido negro a esvoaçar ao vento, despedindo-se dos artistas que a acompanharam, optou por se afastar sozinha em direcção à Baixa.
Descalçou-se e de pés nus e os sapatos de salto pendurados na mão, ainda com o peito a arfar de prazer pela romântica noite que acabara de viver, foi descendo pensativa a íngreme calçada do Quebra Costas.
Pisando as mesmas pedras frias por onde caminharam Menano, Goes, Bernardino, Zeca Afonso e tantos outros.

Estacou!
Pareceu-lhe ouvir um sussurro vindo das profundezas da calçada. Tensa, apurou os sentidos e, incrédula, ouviu este diálogo entre o calhau rolado, estranhamente mais tépido que os outros, e que o seu pé nu inexplicavelmente acariciava e o degrau de mármore da casa ao lado.

- Sou de rudes origens, nasci na Serra da Estrela e rolei na correnteza do Mondego até chegar a Coimbra onde me poli até ser colocado nesta calçada.
Por aqui passaram homens e mulheres insignes, ricos e pobres, sérios e desonestos, polícias e estudantes. Mas a nenhum deles jamais me afeiçoei.
Agora, porém, estou perdidamente apaixonado.
E tu meu caro mármore, como aqui vieste parar?

- Vim de Estremoz para embelezar os salões da Universidade, do Episcopado, dos Solares das familias burguesas.
Das sobras, fizeram-me degrau desta casa. Orgulho-me de conviver com a aristocracia, ao contrário de ti, pobre calhau rolado sem pergaminhos.
Mas nós as pedras não temos sentimentos. Não compreendo por isso, como dizes estar apaixonado! E por quem o estarias?”, perguntou-lhe trocista o mármore na sua frieza gélida.
O calhau rolado, ronronou, de coração palpitante, envolto num doce prazer e respondeu-lhe:
- Jamais, até hoje, tive a sensação da aveludada pele de um pé nu carinhoso e sensual a afagar-me, como agora mesmo o sinto.
O pé de uma bela mulher romântica, dona de uma voz incomparável, que ainda há pouco fez resvalar por estas pedras como água limpida e fresca, que só um frio e pedante mármore como tu não consegue sentir.
Sim estou apaixonado por esta jovem e esbelta mulher!

Rui Felicio

 

17 comentários :

  1. Estas duas pedras merecem ir para a funda São. Concordas, Rui Felício?

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  2. Excelente!!! Abraço, caro amigo Rui Felício!

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  3. Só depois de ler este bonito texto é que me apercebo da sensualidade que é o pé nu de uma bela donzela, afagando, com um doce andar, as pedras da calçada. Um belo texto, cheio de erotismo e sensualidade!

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  4. Digamos que este conto tem dois tempos, parece-me.
    No primeiro tempo fala-se da polémica que envolveu o facto da canção de Coimbra ser cantado por vozes femininas Penso que as "peias ou condicionalismos serôdios " ainda não foram ultrapassados.
    No segundo tempo é o romantismo do autor que dá vida e sentimentos a pedras que deixam de ser inertes para nos proporcionar um diálogo bem demostrativo que até nesse mundo de fantasia existem diferentes camadas sociais. E, fica dado o recado e enviada a mensagem, um simples calhau retirado das águas do Mondego pode ser bem mais feliz do que um aristocrata mármore de Estremoz.
    As carícias de um pé de mulher bonita fazem milagres...
    Parabéns Felício. Muito bom.

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  5. Errata: "demonstrativo" e não "demostrativo"..

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  7. A todos agradeço a vossa vinda a este espaço, porque a paga de quem escreve sao os olhos dos leitores. Maior ainda quando sao meus amigos...

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  8. Erotizada/o se vai ficando à medida que vamos lendo...Quem não gosta de carícias,pedras e os calhaus.
    Um texto inspirado na velha Coimbra que todos calcorreámos e, tu, sabe-se lá quantas pedras foste acariciando com os dois pés e fantasiando...Daí um um encantador poema em prosa.
    Parabéns!

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    1. Sempre um encanto lê-lo, Rui Felício! Na primeira parte a sua defesa do direito da mulher poder também cantar o Fado de Coimbra, fazendo assim a evolução para novas visões modernas deste Fado, tão sentido e poético, tão peculiar!
      Na segunda parte, colocou na indiferença aparente de um calhau roliço do Mondego a finura de um sentimento tão forte e vibrante como a "paixão", apenas pelo suave toque acetinado dum pé nu de uma bela e jovem mulher, que tinha lançado, como luz, na noite coimbrã a sua límpida e sentida voz ! Um bonito pé de mulher tem sempre uma enorme carga erótica e o sensível calhau ao senti-lo sobre si, soube captá-la e desenvolver sentimentos tão excepcionais e raros, quanto vibrantes e unilaterais! Pudesse um beijo de uma mulher transformar as pedras da calçada, da mesma índole da que descreveu, em seres humanos masculinos e o milagre do amor acontecer, muitas andariam de joelhos a beijá-las, a ver se o produto do beijo era tão precioso quanto o calhau!...

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    4. Curiosamente, hoje faz precisamente um ano que este conto foi partilhado e eu estou a escrevê-lo precisamente à mesma hora em que o fiz o ano passado! Há coincidências extremamente curiosas, que se não fosse uma redundância, eu diria premonitórias, não havendo contudo nenhuma circunstância para a definir como tal! Mas como é que me deu para vir ao seu blog reler um texto já conhecido e bem fixado e depois reparar nesse pormenor irrelevante, mas curioso, num momento em que ando ajoujada de trabalho de grande responsabilidade, tendo feito apenas uma pausa de descontracção! Não vou voltar a comentar o seu belíssimo texto, só deixar este pequeno pormenor, que me faz pensar em transmissão de pensamento em que acredito!
      Desculpe a intromissão, mas não quis deixar de lhe comunicar este facto curioso, influenciada porventura pela minha estadia na Índia, onde toda a mística é muito virada para fenómenos destes! Uma boa noite, meu bom e paciente Amigo!

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  9. https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=LGk7PPpC8co

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    1. Nunca apreciei ( ou soube apreciar...) o fado tradicional de Lisboa.
      Com excepções, resultantes mais da qualidade da voz dos fadistas ( como Carlos do Carmo, Marisa, Amália e alguns outros ), do que pelo estilo.
      Todavia, gosto cada vez mais do fado interpretado pelas novas vozes das gerações mais recentes, como é o caso de Camané, Raquel, Ana Moura e, acima de todos, a Carminho. Porque cantam sem desvirtuar o estilo mas dando-lhe um toque mais moderno, mais dos nossos dias, com letras actuais.

      Por isso, entre a surpresa e a satisfação, vejo aqui um fado da Carminho sobre as "pedras da minha rua", que agradeço.
      Lamentando embora não saber quem se dignou fazê-lo neste espaço obscuro perdido no mundo da internet.

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