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sábado, 7 de setembro de 2013

TRAGÉDIA


Depois de dias de intenso calor, o dia amanheceu cinzento.
Fraco mas persistente chuvisco matinal molhava a Ericeira...
Estava em casa de pantufas, sonolento, quando uma gritaria me fez vir à porta. Os cães não se calavam....
Era um alvoroço, um grande ruído, um estardalhaço. O barulho das sirenes aguçou a minha curiosidade humana.
Todo o ser humano é curioso, e mais doentiamente o fica quando ouve o buzinar estridente e arrepiante de sirenes...
Ao ouvi-las, toda a gente estica o pescoço, abre a boca de espanto, carrega o sobrolho e interroga-se sobre o que se passou.
E mesmo antes de o saberem todos conjecturam e deitam-se a adivinhar:
- Acho que morreram dois!
- A culpa foi daquele ali!
- Conduzem carregados de álcool, é o que dá!
- O INEM chega sempre tarde...
Quando olhei o espalhafato não foi muito diferente. Grande confusão por ali ia! Havia carros de bombeiros, da polícia, ambulâncias, gruas móveis e até um helicóptero...
Diviso quatro corpos, pernas e braços arrancados, duas cabeças que rolaram, rodas de carros, vários carros sem rodas...
Não conseguia perceber como tudo ali foi parar, como é que aconteceu aquele caos mesmo a dois passos da minha casa.
Havia adultos, crianças, destroços...
Mas pouco a pouco, sob as ordens de uma mulher com visível autoridade, aquela cena ia se desfazendo diante dos meus incrédulos olhos.
As personagens da tragédia estavam a ser retiradas, uma a uma.
Os carros, as gruas, duas ambulâncias e o helicóptero foram recolhidos, os corpos inteiros ou mutilados, todos aleatóriamente empilhados e misturados, como uma salada heterogénea.

Percebi finalmente que as causadoras daquilo tudo, eram duas meninas. Duas inocentes crianças...
Bastou aquela mulher lhes ordenar, para que a Sónia e a Marisa, moradoras na casa ao lado, desligassem as sirenes a pilhas e atirassem de rosto franzido, os carros, as cabeças e braços dos bonecos, tudo para dentro do enorme balde de plástico onde costumam guardar os seus brinquedos.

Era a sua mãe que lhes mandou pararem com a brincadeira e com o chinfrim...

Rui Felicio

13 comentários :

  1. Estes malditos brinquedos que imitam tão bem a realidade!
    E estes benditos contos que nos deixam em suspense até ao fim!
    Ainda bem que ninguém morreu!

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  2. Houve aparato mas felizmemte salvaram se todos...

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  3. Confesso que este conto não me criou qualquer suspense, hoje.
    Já o tinha lido, não sei onde, talvez no "Escrito e Lido".
    Mas, retirado o suspense, fica o prazer da leitura de mais um fabuloso texto do Felício.
    Que maravilha!
    Toma lá mais um grande abraço.

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  4. Sou verdadeiramente uma ingénua, não haja dúvida! Com tragédias não se brinca, sempre ouvi dizer a minha Avó Engrácia, e fui lendo o conto com o sobrolho carregado, um certo sabor amargo na boca entreaberta em expectativa e eis senão quando vejo à minha frente o Rui Felício com o seu riso mefistofélico, a substituir pessoas humanas por brinquedos a fazerem de conta que ali a tragédia também existia! Isto depois da mutilação de corpos espalhados e desmantelados, depois de todo o alarido, acabarem numa salada heterogénea! Francamente! O Rui Felício perdeu - pensei para mim - o sentido do equilíbrio, o bom senso perante o sofrimento! Pois sim!!! Não tem mesmo emenda este grande senhor da palavra!
    De qualquer modo, mesmo amuada pela trapaça, devo confessar que a sua estória é fabulosa!

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  5. Reli-o de novo com o prazer que me deu a vantagem da minha memória não ter retido o final.
    És mestre no suspense e dos finais imprevistos.
    Um abraço
    Abílio

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  6. Reli-o de novo com o prazer que me deu a vantagem da minha memória não ter retido o final.
    És mestre no suspense e dos finais imprevistos.
    Um abraço
    Abílio

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  7. Também me lembro de ter lido este texto. As histórias de Felício não se esquecem

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  8. Muito bom mas lembro-me bem dele quando o publicaste em tempos.

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