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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

IN MEMORIAM

Partilhei com o Castanheira uma amizade sincera. Na faculdade e mais tarde na tropa, em Mafra. Era uma figura estranhamente sedutora que corria o périplo das cores do arco-iris, desde a mais esbatida à mais berrante, aproveitando de cada uma delas o sortilégio da fantasia e do sonho.
Antes da aula começar, empoleirava-se no estrado e caricaturava na perfeição os gestos e os tiques dos professores. Do Mota Pinto, do Lobo Xavier, do Carlos Moreira, do Rogério Soares, do Sebastião Cruz. Até do Afonso Queiró!
Sabia de cor e salteado todas as peças de Gil Vicente. Declamava a Eneida em latim, convidando-nos a debater a sua superior perfeição em relação à Odisseia e à Ilíada.
Foi actor no Ateneu de Coimbra, mas recusaram-lhe a entrada no TEUC. Levou uma tareia quando foi assistir, de capa e batina, a um jogo da Académica, empunhando uma bandeira do Sporting. Não porque fosse indefectível do futebol, mas porque era um paladino da liberdade, advogando o direito de ser simultaneamente estudante e sportinguista.
Na catequese tinham-lhe ensinado a rezar. Era avesso à hierarquia eclesiástica, mas orar não tinha mal, dizia ele...
A inveja da sua imaginação delirante, da sua popularidade e da sua cultura levava muitos colegas pseudo intelectuais oriundos de famílias com bolorentos pergaminhos, a catalogá-lo de pária. Que não era!
Nado e criado pobre, o Castanheira era humilde mas não subserviente. Amava a doçura da vida numa alegre manhã de sol. Quando os tostões lho permitiam, de guardanapo ao pescoço, babava-se de antecipado prazer em frente a um corriqueiro e fumegante bife com batatas fritas, na tasca da Tia Rosa na Portela, ensinando Direito aos camponeses que por ali paravam para se amesendarem, comerem uma bucha e beberem uma litrada de tinto ao fim do dia.
A infelicidade não o consumia porque a sua alma pairava em vaporosas nuvens atrás das quais havia de vir um dia o esplendor e a glória que ambicionava. Não que as quisesse para suplantar o seu semelhante, mas para ter o poder de influenciar e quebrar as injustiças do mundo.
Como tantos portugueses, para apressar a vinda do sonhado eldorado, o Castanheira rezava à Nossa Senhora de Fátima e comprava vigésimos de lotaria...
Uma coisa ou outra havia de resultar

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