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quinta-feira, 28 de março de 2013

AMOLA TESOURAS


A minha memória , entre várias figuras que percorriam as ruas do Bairro, guarda ainda a imagem do amola-tesouras.
Com a boca deslizando numa gaita de beiços, primeiro num sentido e depois no contrário, percorria totalmente a escala musical, dela extraindo uma melodia estridente e inconfundível.
Era desta forma que anunciava a sua própria presença, chamando as donas de casa que tivessem facas e tesouras para afiar, panelas e tachos rotos para remendar, ou mesmo pratos rachados para lhes serem colocados “
gatos
”.
Dizia-se que a sua vinda previa chuva iminente. A profecia muitas vezes batia certo, apenas porque era no inverno que o amola-tesouras aparecia com maior frequência. Por causa dos consertos nos guarda-chuvas, que também fazia...
O seu principal instrumento de trabalho era constituído por uma roda feita de pedra de esmeril, que fazia rodar a grande velocidade, impulsionando um pedal acoplado à roda de bicicleta que àquela estava ligada por uma correia de transmissão em cabedal.
Fascinava-me observar o trabalho de afiar as facas e as tesouras. Da pedra de esmeril em contacto com o metal, soltava-se uma miríade de faíscas que me lembravam os fogos de artifício que eu tinha visto nas festas da Rainha Santa.
E, a tantos anos de distância, dou por mim a reflectir como os tempos mudaram de maneira tão acentuada.
Hoje em dia, os hábitos de consumo que nos foram sendo incutidos, tornam quase impensável mandar consertar utensílios e ferramentas do nosso quotidiano.
Se um guarda-chuva se estraga, deitamos fora e compramos outro na loja dos chineses.
Se as lâminas da faca ou da tesoura embotaram, se o prato rachou, se o tacho furou, fazemos a mesma coisa.

Displicentes, apressados, nós próprios também quase descartáveis...
Rui Felício


3 comentários :

  1. A memória dos tempos idos em que no nosso bairro além do amola-tesouras( lindamente descrito),as vendedeiras de couves, de peixe,o leiteirinho,a padeira,etc. deambulavam pelas ruas e os fregueses se apressavam a comprar tudo fresquinho vindo directamente do agricultor e do mar....Alguma frescura da memória ainda nos permite recordar:"No meu tempo,era assim...."tal como o fizeste agora.

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    1. Obrigado Olinda.
      Nunca será demais recordar a vida que nos moldou em tempos idos.
      Era uma vida dificil tanto para os compradores, como para os vendedores dos produtos.
      Mas havia a garntia de que o que se transaccionava era genuino.
      Sem serem precisas tantas leis, regulamentos, normas que os burocratas de Bruxelas nos impõem...

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  2. Felizmente que pertencemos a uma geração abençoada, que se pode vangloriar de poder ter retido momentos únicos e felizes, a que só tardiamente demos o devido valor.
    Recordar pedaços de vida que nos foram tão gratos, é sempre um exercício de felicidade que nos traz de volta tudo o que vivenciámos com a doçura de algo sem regresso.
    Por isso, textos com o realismo deste do Rui Felício são tão importantes, por nos transportarem àqueles tempos, fazendo-nos escutar de novo, como por magia, os sons inconfundíveis e apetecíveis da nossa juventude...

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