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quinta-feira, 21 de março de 2013

NOS BRAÇOS DO POETA (NO DIA DA POESIA)


Aos 18 anos, o Jaime concluiu o 5º ano do liceu e começou a trabalhar na secretaria dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Outros tempos aqueles,  em que um mínimo de habilitações académicas eram passaporte garantido para arranjar emprego.
Como acontece com a maior parte dos artistas e dos poetas, o Jaime era exageradamente tímido. Dotado de uma enorme sensibilidade, sabia transmiti-la, como poucos, para as inúmeras, belas e bem construídas poesias que diariamente escrevia ou rascunhava nos guardanapos de papel do café Piolho, do Oásis ou do Mónaco, mas terrivelmente inseguro como era, guardava-as para si às escondidas de todos.
Relutante, só as mostrava aos amigos mais próximos, sempre com um ar receoso da crítica ou dos gracejos que sobre elas pudessem fazer.
O seu ar habitualmente melancólico tinha-se tornado desde há uns tempos, mais abatido e ansioso do que o costume, o que levou o Vitor, seu colega de emprego, extrovertido e boémio, a perguntar-lhe se andava doente, se tinha algum problema, ao que o Jaime respondeu, hesitante e envergonhado, que andava loucamente apaixonado pela enfermeira Natália, mas que não tinha coragem de lhe declarar o seu amor.
  
O Vitor assobiou baixinho, estalou os dedos e sentenciou:
- Eh pá, tu não te assoas a qualquer guardanapo! Essa miúda é um espanto, boa como o milho, mas olha que não é fácil aceder-lhe! Porque é que não lhe escreves uns poemas? Tu tens jeito e não há mulher que não amoleça quando lhe dão flores ou lhe fazem uns versos bonitos.
O Jaime argumentou que não seria capaz de chegar ao pé dela e, sem mais nem menos, dar-lhe um papel com poesias suas. Aliás já escrevera várias a pensar nela, no silêncio do seu quarto, mas faltava-lhe a coragem para lhas mostrar.
O Vitor, autoritário, ordenou-lhe que trouxesse um desse poemas no dia seguinte que ele próprio se encarregaria de lho entregar. O Jaime agradeceu-lhe reconhecido a amizade e, a partir daí, quase dia sim dia não entregava ao Vitor uma nova poesia dedicada à sua amada... que este religiosamente levava à Natália.
O Jaime, ao fim de mais de um mês perguntou ao amigo se ela não estaria já disponível para um encontro, agora que o ia conhecendo através dos seus poemas, ao que o Vitor, dando-lhe uma palmada nas costas, lhe retorquiu:
- Calma! Está quase, pá, está quase...Faz lá mais uns versos que ela não tarda a cair...
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Subitamente, o Vitor e a enfermeira foram transferidos quase na mesma altura para o Hospital dos Capuchos em Lisboa. O Jaime nunca mais soube nada deles e acabou por esquecer aquele amor que o tinha mortificado.
Um dia, no apartamento de Oeiras onde viviam, a Natália olhou o Vitor e confessou-lhe que se apaixonara por ele, mais pelos belos poemas que ele lhe oferecia durante o namoro, do que por outra qualquer razão.

Mas andava triste porque, desde que se tinham casado, ele nunca mais lhe tinha feito nenhuma poesia!
- Faz-me um poema daqueles que só tu sabes fazer, meu amor. Fazes? Prometes?

O Vitor desculpou-se. Explicou-lhe que, desde que vieram para Lisboa tinha perdido a inspiração...

Rui Felicio

21 comentários :

  1. Obrigado Rafael

    Fiquei indeciso se devia publicar também no EG, para não sobrecarregar a tua programação

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    1. Sobrecarreg... Ó Rui Felício, isto está um mimo!
      E o Rafael só pode agradecer. Não é, Rafael?

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    2. E enquanto o Rafael, não responde... posso publicar n'a funda São, Rui Felício? Já se sente a falta dos «contos Felícios».

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  2. Dá para pensar!
    Fetiches que se criam ,neste caso a poesia no sentido da conquista do amor...a ponto da Natália e o Jaime se tornarem alvo da traição do Victor...Estes estragemas ainda de praticam...Malvados ou malvadas que os praticam !
    Rui escreve também no EG, de vez em quando, pois elevas, o nível do blogue com a tua bela escrita.Além da proximidade que crias connosco.

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    1. Fico contente com a tua opinião, Olinda.
      Mas penso que muitos não gostarão de textos algo sorumbáticos que não se enquadram na auréola de leveza e alegria que claramente caracteriza o EG.

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    2. Rui não te desvalorizes!
      Tu sabes que escreves lindamente quer com sentimento de dor quer com sentimento mais alegre... E nós amamos o que escreves desde sempre.Não te boicotes a ti próprio,solta-te e escreve...Quem me dera saber escrever qualquer coisa apenas razoável que fosse!Com muita amizade te digo, os teus textos fazem-nos falta, tristes ou menos tristes.A dupla Quito e Rui completam-se nesta arte da escrita e a opinião é generalizada,bem sabes!

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  3. ... voltamos a ter o Rui ... pagina diária obrigatória:)

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  4. Pois é, Felicio, a tua escrita faz-nos falta e faz-te falta.É tao bom ler-te.Bjo

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Uma história muito bem engendrada e escrita, dum "bom" malandro que não se acanha, com toda a desfaçatez, a passar por cima do amigo, a traí-lo, a roubar-lhe a garota "boa como o milho", que este olhava com encantamento, na sua timidez e credulidade. O mundo é feito de gente como esta, que não olha a meios para atingir os seus fins! Lealdade é palavra puída, que poucos conhecem.
    Curiosamente, aconteceu-me uma história semelhante, embora sem moral de La Fontaine, com uma colega minha, filha de gente muito conhecida da cidade do Porto, que se tomou de amores por um engenheiro, filho de uma hortaliceira da família, calças largas e amarrotadas, caspa no casaco, sapatos por engraxar, desengonçado e desinteressante, e que não nutria a menor pontinha de interesse por ela. Desgostosa e de coração em desesperada paixão, suplicou-me que a ajudasse a conquistá-lo.Diga-se em abono da verdade que a "menina bem" tinha tanto de fútil, como ele de inteligente. Comecei então a escrever-lhe postais, cartinhas, bilhetes (trabalhando ambos na mesma fábrica!...) e, lentamente o homem fugidio e arredio começou a ceder aos convites, começando pelas tasquinhas (a meu conselho) dada a origem humilde dele e com muito tacto aumentando de categoria até aos lugares que ela frequentava. Sob a minha batuta, a música lá continuava, ele foi-se aprimorando, a caspa desapareceu, perdeu o ar de bicho do mato, até que acabou em casamento faustoso, com a hortaliceira aperaltada, sem cheirar a coentros. Ela só me perguntava, em pavor e angústia: "E agora, Manuela, como vou fazer para que ele não perceba?!", ao que eu respondia: "Agora?! Não tens que escrever, mas as cartas és tu que as vais dar, usa de astúcia e sabedoria para o conquistares!". Sempre que passava por mim, de braço dado com ele - o verdadeiro casal exemplar - ela piscava-me o olho e ele fazia-me uma vénia! E eu pensava cá para os meus botões: "Mas afinal este homem era de mim que gostava!...".
    Os meus parabéns, Rui Felicio, gostei muito!

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    1. Mesmo sem a conhecer ( ou talvez por isso...), é fácil perceber que a Maria Mesquita é uma pessoa com o dom da escrita.
      Na verdade, este comentário demonstra-o. É uma verdadeira história bem contada dentro da história.
      Obrigado!

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    2. Gostei deste texto de Maria Mesquita.Muito bem escrito e interessante!

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    3. Agradeço ao Rui Felício e ao Rafael os simpáticos comentários à minha estória escrita ao correr das teclas, sem ter sido aprimorada, como o exigiria o espaço em que a inscrevi. Não o deveria ter feito, pois se trata do tabernáculo dum Mestre da palavra, onde não deveria ter entrado, sem permissão do dono. Peço desculpa pelo abuso, mas não estou habituada aos blogues e não conheço bem as regras de "etiqueta"...Um abraço grato a ambos.

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    4. Mato a cabeça a tentar descobrir se a conheço.
      Mas penso que não, de outra forma não esqueceria a forma escorreita e atractiva como escreve.
      Este humilde e despretensioso espaço mais não é do que uma espécie de armazém onde guardo a esmo algumas das coisas que escrevo e que acho não merecerem maior divulgação noutros locais mais nobres.
      Tem contudo as portas abertas a quem queira entrar.
      Especialmente a quem, como a Maria Mesquita, possui o dom da escrita...

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. O que posso dizer?
    O Rui sabe quanto admiro os contos que escreve.
    Gostava que de vez em quando também o fizesse no EG.

    Mas a opção de já há muito o ter deixado de o fazer foi uma opção sua.
    A opção de voltar a fazê-lo, de vez em quando só ele a pode tomar.
    Mas que vou passar a ser frequentador assíduo do seu blog, sim isso vou ser.Porque não quero perder os seus belos textos.
    Digo francamente: no facebook não me dá jeito ler textos. Sou mais de "gosto", e está feito!
    Um abraço Rui.A minha consideração por ti é como amigo e nada tem a ver com blogues.

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    1. Eu sei Rafael!
      Eu sei, e disso nunca duvidei, que a nossa amizade é lateral a blogues.
      Nem poderia ser de outra forma, tratando-se de ti que és a pessoa mais sã para cultivar a amizade que eu conheço.

      Nunca deixei de colaborar no blog Encontro de Gerações como sabes.
      Primeiro e durante muito tempo com postagem de textos e mais recentemente através de comentários às postagens de que mais gosto.
      São formas diferentes de colaboração mas uma e outra igualmente válidas.

      Como disse acima à Olinda, a saudável dinâmica do EG levou-o para rumos menos sorumbáticos e mais leves e alegres, o que é de aplaudir por ter atraído a colaboração de muitos que antes pareciam afastados ou desinteressados.
      E é aí que reside essencialmente a menos assídua publicação de textos meus por os achar menos adequados ao novo espírito.

      O que conta no EG é o seu dinamismo, o espaço de liberdade, seriedade e fortalecimento de amizade entre as gentes do Bairro ( os que lá viveram, os que por lá passaram e os que ainda lá vivem )
      E esse espirito, essas qualidades, têm refinado, têm atraido mais e mais gente, tornando-o um blogue que é já uma referência indesmentivel e imorredoira das várias gerações ligadas ao nosso Bairro.

      Esse mérito é teu. Todo!






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  9. Toda a minha consideração!O EG conta contigo, seja com algum texto ou só comentando!
    Um abraço!

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  10. Regressada de férias, vim dar uma espiadela ao blog do meu bom amigo Escritor e reli este seu delicioso conto, tão a seu jeito, com um sorriso, como se virginal, que se ia esboçando à medida que o relembrava! É curioso que o interesse no seu trama nunca me satura e leio-o como se pela primeira vez se tratasse.
    Breve, breve, irei retomar a minha actividade, mas não deixarei de vir oxigenar os meus neurónios na sua escrita e refrescar a mente no seu humor tão arredio actualmente do nosso País em crise! Deixo-lhe um abraço ainda com os cheiros e as cores da distante Índia, onde mergulhei desatinadamente durante um mês, para desenvolver um trabalho de pesquisa que estou a levar a cabo. Gostaria de ter uma linguagem cinematográfica para lhe transmitir a beleza marmórea e a sumptuosa, delicada e fascinante arquitectura do Taj Mahal, que o imperador Shah Jahan mandou construir em memória de sua esposa favorita, Aryumand Banu Begam, a quem chamava de Mumtaz Mahal ("A jóia do palácio"), hoje considerado uma das 7 modernas Maravilhas do Mundo. Mas mais maravilhoso do que o Palácio foi esta deslumbrante prova de amor de um poderoso à sua amada!

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