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quarta-feira, 27 de março de 2013

VIDA FÁCIL?


Nunca conheceu a mãe que a pariu.

Deixou-a na Roda ainda ela tinha só uma semana de vida.
As freiras diziam que a sua verdadeira mãe tinha sido uma prostituta de Coimbra que não a podia criar e que a abandonou na Roda.

Para que alguém tomasse conta de si, as bondosas religiosas entregaram-na a uma Senhora rica, dona de uma quinta nos arredores de São João do Campo a quem ela se habituou a chamar mãe.
Aos 7 anos de idade já mourejava de sol a sol no amanho da terra juntamente com os camponeses que a Senhora contratava para as sementeiras e para as colheitas.
À hora da sesta levava-lhes água fresca, azeitonas, broa e uma cabaça de vinho.
Quando debaixo da roupa de chita começaram a despontar-lhe duas colinas e as ancas se lhe iam alargando, aqueles homens rudes atiravam-lhe dichotes obscenos, passavam-lhe as mãos ásperas e gretadas pelas pernas, pelos seios púberes, pelo rosto de adolescente.
Quanto mais ela se esquivava, quanto mais rispida era com eles, mais eles riam, mais ordinários se tornavam.

Um dia, tinha a miúda acabado de fazer 13 anos, oculto por detrás duma fiada de trepadeiras junto às pocilgas dos bácoros, o Granadeiro, capataz da quinta, puxou-a por um braço, tapou-lhe a boca com a mão crispada para ela não gritar e arrastou-a para cima de um monte de palha dentro da pocilga.
Debatendo-se sob o peso do seu corpo de homem possante, sentiu-o a entrar dentro de si, rasgando-a, desfrutando a sua virgindade. Saciado, o capataz deixou-a para ali, dorida, revoltada.
A dona da quinta, quando soube, ficou furiosa, chamou-a e disse-lhe que ela era outra igual à sua mãe e que, a partir daquele dia não a queria mais em sua casa.
O Granadeiro levou-a para Coimbra arranjando-lhe um quarto em casa do seu amigo Gilberto, que a acolheu.
O Gilberto andava sempre impecavelmente vestido, o cabelo bem penteado, os sapatos castanhos debruados a branco ofuscavam de brilho.

Acarinhou-a, dava-lhe prendas, levava-a a passear.
Apresentou-a a amigos seus, incentivando-a a tratá-los bem, a ser-lhes prestável em troca de ofertas ou dinheiro que eles lhe dessem, para assim ajudar a comparticipar nas despesas que ele estava a ter com ela.


A rapariga cresceu e acabou por se apaixonar pelo Gilberto. É certo que ele às vezes lhe batia quando ela tentava recusar-se a estar com algum dos seus amigos, mas o amor dela era mais forte e perdoava-lhe tudo quando ele a seguir a enchia de carinhos, quando o seu abraço e os seus beijos lhe aqueciam a alma, quando as suas palavras ternas a estimulavam e inundavam de prazer.
Já não havia dia em que o Gilberto não lhe ralhasse, quando ela lhe entregava o dinheiro que tinha recebido e que ele achava sempre pouco. Gritava-lhe, batia-lhe, chamava-lhe desgraçada sem eira nem beira que nem era capaz de ganhar o sustento e o tecto que ele lhe dava.


Um dia o Gilberto, depois de uma violenta discussão, expulsou de casa aquela já mulher, precocemente envelhecida, que passou a deambular nas noites frias pela Av. Fernão de Magalhães, oferecendo-se aos homens que ainda se dignassem dirigir-lhe um olhar.


Passado um ano, descuidou-se e engravidou.
Foi depositar na Roda, embrulhada num saco de plástico, a criança que pariu na mata do Choupal.

Rui Felício



13 comentários :

  1. Respostas
    1. Guida,coloca fotografia!
      É mais empático o diálogo...Não achas?
      Eu sei que achas que é.
      Quero ver os teus lindos olhos.

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    2. Para colocar fotografia é preciso criar o perfil. Quando tiver um tempinho eu faço.

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  2. Os homens são mesmo, dum modo geral, obscenos, insensíveis, abusadores da fragilidade da mulher.
    Estas, de coração mais dócil, no fado da sua vida de pobreza, ficam à mercê da grosseria e desumanidade do macho garanhão! A violência física e verbal amachuca-as, rouba-lhes a auto-estima, depaupera-as psiquicamente e, cada vez mais, ficam à mercê duma sociedade tipicamente machista, sem forças para lutarem contra ela!
    Folgo imenso que o Rui Felício tenha trazido às luzes da ribalta uma situação tão aviltante que, por tanto considerar a Mulher, o indignou e mereceu as palavras que saíram da sua pena sábia e da sua mente aberta!
    Os meus sinceros parabéns

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  3. Vida cruel! Triste sina!
    Quem sabe se aquela criança concebida a troco de algumas moedas e levada por aquela infeliz mulher seguindo os passos de quem anos atrás fizera o mesmo com ela, não terá tido um destino diferente, e tivesse encontrado na vida aquela felicidade que a mãe nunca teve!?
    Bonito texto que embora chocante, triste e deprimente, chama a atenção para uma época talvez até não muito longínqua, em que a mulher era desrespeitada e tratado como um farrapo, com uma coisa, que os homens usavam e deitavam fora!

    TERESA LOUSADA

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  4. Infelizmente, este texto tem tanto de chocante como de verdadeiro!
    A raiva com que fiquei ao Granadeiro e ao Gilberto, sem hipocrisias, para mim mereciam a pena de morte... mas lenta e com sofrimento!

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  5. Crueldade sem ímpar...
    A sua continuidade é mais que actual!
    Apenas os destituidos de sensibilidade ou masoquistas têm a coragem de se sentirem "donos" das mulheres( claro,quando forçadas...) até se "orgasmarem" nogentamente.
    Na minha vida profissional tive que lidar com bestas destas....e, como é óbvio, com as suas famílias destroçadas,mulheres e filhos,no sentido de "tratar" socialmente e psíquicamente estes e entregar à polícia o patife.
    A vida ainda é muito dura para as mulheres e as crianças indefesas!Quanto lamento mas já vamos tendo situações em que a mulher se impõe com determinação.Mas as crianças...
    Tema bem descrito por ti,realçando os valores que fazem parte da tua personalidade e forma de estar na vida!

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  6. Tão "vida real"...
    Vou levar para a funda São.

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  7. Li, com a maior atenção, o testemunho da Olinda Rafael, que, melhor do que ninguém, contactando famílias várias em situações semelhantes, pôde constatar diversas situações dentro de contextos similares. Mas a violência não abrandou, bem pelo contrário, a crise está a aumentar a estatística e o pior é que é transversal a todos os extractos sociais!
    Há que formar mentalidades, que dar educação, combater o vício (seja ele álcool ou droga), mentalizar as mulheres para o seu estatuto como tais.
    Psicólogos e psiquiatras deveriam ter algo a dizer e a sugerir, pois ainda acredito na bondade humana e que um homem mau ou tarado tem sempre por detrás da sua atitude uma razão qualquer, que poderá ser tratada.
    Pena de morte, lenta e com sofrimento, Alfredo Moreirinhas? Numa sociedade maioritariamente dita católica, num País que foi o primeiro a abolir a pena de morte?! Compreendo perfeitamente a sua indignação,o seu repúdio, o seu nojo, mas - a meu ver - isso não iria resolver nada, era o ódio contra o ódio, nunca sendo este a melhor panaceia em caso algum!
    Um texto bem escrito que dá para trocar ideias!

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  8. Maria Mesquita,é verdade não abrandou e a tendência,atendendo ao status quo,é para o seu agravamento.De facto,enquanto trabalhei,integrada numa equipa interdisciplinar( psiquiatras,psicólogos,assistentes sociais,enfermeiros e outros) e, com formação sistémica( dada por excelentes técnicos( dr.Daniel Sampaio,dr José Gameiro e mais).Pois nada é linear... Debruçámo-nos, técnica e profissionalmente,sobre as horrosas situações no sentido de identificar os problemas causadores de casos como o Rui identifica e bem. Obtivemos,bons resultados, em muitos casos através de estagégias específicas e, aprofundando a questão da violência doméstica a mulheres,crianças e idosos com muita frontalidade e seriedade profissional.Não ficámos,reduzidos ao trabalho em Coimbra,ampliámo-lo a nível nacional e com elementos da PSP,em que lhes foi dada formação específica,etc,etc,...Ora com isto a Mudança dá-se se os próprios intervenientes,os agressores e os agredidos quiserem mudar a sua forma de estar! O agressor irá sempre um processo juidicial em cima,pelo crime público que pratica,como sabe.Esta actividade mantém-se ainda hoje e não acabará nunca( só se o governo o parar...)Mas trabalhar com pessoas e suas inter-relações é tremendamente difícil quanto aliciante... A tarefa mais difícil é mudar mentalidades,mesmo as das mulheres, neste campo e noutros... Não me prolongo mais porque teria muito pano para mangas pelos 40 anos de profissão na área social.Actualmente,ainda dou "uma perninha" como voluntária.Parar é morrer.Obrigada por originar esta troca de opiniões que só nos valoriza desde que o "dono" do Blog não se importe.

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  9. Exactamente, Olinda Rafael, desde que o dono do Blog se não importe!...Mas penso - pelo pouco que dele me vou apercebendo - que o Rui Felício, com a sua prosa já amplamente reconhecida, lança o tema exactamente para que seja debatido e à sua volta se crie uma tertúlia com ideias. Adorei ouvir o seu testemunho enriquecedor duma longa experiência coadjuvada por técnicos de alta estirpe e mérito e com o empenho que demonstra ter posto nessa causa. Vejo que tem um profundo conhecimento destes casos e que se empolga na resolução dos mesmos.É uma área que me parece muito delicada e onde têm de ser os próprios agressor/agredida a dar o primeiro passo para um ponto final no opróbrio. Depois, o tal atraso nas mentalidades das mulheres (e eu conheço vários, em que intervim)fazem-nas protelar uma situação doentia e perigosa, sempre à espera de Godot, que nunca vem...É muito estranha esta interdependência de agressor/agredida (ou agressora/agredido), os sentimentos que se geram, estranhos e bipolares!Adorei saber todo o trabalho desenvolvido em Coimbra e ampliado a nível nacional! Os meus parabéns pela sua exemplar tarefa e a sua incondicional entrega à causa! Bem dita seja por isso!

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  10. Vivo debate este que muito me compraz.
    A que não é alheia a reconhecida experiência da Olinda nestas áreas.

    Centrou-se o diálogo e troca de ideias, entre a Maria Mesquita e a Olinda,numa das vertentes que subjazem à história que contei.
    Outras poderão ser afloradas, no ciclo infernal que o texto contém e que cronológicamente enuncio:

    - Adopção de criança filha de pais desconhecidos
    - Exploração de trabalho infantil
    - Abuso sexual de menores
    - Proxenetismo e prostituição
    - Exploração de trabalho escravo
    - Maternidade e parto não assistidos
    - Abandono de recém nascido

    No meio destes crimes hediondos, alguns deles a culpa não é de quem os comete mas da sociedade que os incentiva e possibilita, tornando as vitimas em seus autores.

    Reflitamos e meditemos em como, no meio deste lamaçal, consegue ainds assim florescer o amor de uma mulher entalada na engrenagem que a tritura!

    Por último, pretendi denunciar o circulo vicioso que começa no abandono de uma criança que, depois de adulta, acaba por regressar à origem, reiniciando o circulo com igual abandono da criança que trouxe no seu ventre durante nove meses.
    A vida não é fácil. Menos fácil ainda é ter a sorte de se conseguir sair desse circulo...

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