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terça-feira, 11 de junho de 2013

A ESCRITA É UMA ARMA


Solteiro, sem filhos nem familia, o Baptista tinha dedicado toda a sua vida à escrita. Era redactor da Gazeta de Penacova, onde elaborava as noticias e mantinha uma crónica semanal sobre a vila e o País.
Mas a crise foi aumentando as dificuldades financeiras da Gazeta, a publicidade definhava, as assinaturas diminuiram drásticamente e o proprietário e director teve de o chamar para lhe dizer que não tinha condições para lhe continuar a pagar o ordenado.
Perdido o emprego e único meio de subsistência, o Baptista mandou o curriculum para todos os jornais da região. As respostas recebidas, transmitiam-lhe o reconhecimento das suas invulgares qualidades de jornalista, mas argumentavam que a crise os tinha abalado a todos.
Lembrou-se de recorrer ao Gaspar, seu antigo colega de escola, e que era uma próspero comerciante de materiais de construção a quem a crise parecia não ter afligido, pedindo-lhe emprego na sua loja.
O Gaspar torceu o nariz, abanou a cabeça com fingido desalento e disse-lhe que os negócios tinham decaído muito e que não lhe poderia arranjar emprego.
Mas podia arranjar-lhe umas coroas se ele escrevesse uma carta para ser publicada na Gazeta, a desancar no João Caldeira, seu rival e concorrente. O Gaspar dar-lhe-ia os tópicos e o Baptista com a sua habilidade haveria de escrever a carta sem recorrer ao insulto nem à calúnia para que o Caldeira não tivesse pretexto para o accionar judicialmentos.
O Baptista ainda tentou recusar, dado que era amigo dos dois, mas perante o aceno de uma nota de cem euros que o Gaspar lhe mostrou para remuneração do trabalho, não resistiu. Precisava do dinheiro como de pão para a boca, para pagar a pensão onde vivia hospedado há longos anos.
 

Ao fim do dia levou o rascunho ao Gaspar que, depois de ler, exclamou:
- Formidável! Está exactamente como eu queria. Vou passá-la a limpo e enviá-la ainda hoje para o jornal!
Na manhã seguinte, bebericando na pensão a xicara de café com leite, o Baptista folheou a Gazeta de Penacova. Lá estava a toda a largura da página 3, a carta com a assinatura do Gaspar a dizer cobras e lagartos do Caldeira.
Nisto, entra na pensão um rapazote que lhe vinha entregar um bilhetinho manuscrito pelo Caldeira, pedindo-lhe que fosse imediatamente à sua loja. Precisava de falar com ele urgentemente.
O Baptista sentiu um baque no coração. Se calhar a sua forma de escrever atraiçoara-o e agora tinha de se haver com o brutamontes do Caldeira que certamente já tinha descoberto que a autoria da carta era sua.
Ainda disse ao rapaz que mais logo ia falar com o seu patrão, mas o emissário esclareceu que o Sr.Caldeira o mandou não sair dali sem levar consigo o Sr. Baptista.
Preocupado, a imaginar que desculpas havia de dar, lá foi.
O Caldeira mandou-o entrar para o cubiculo nas traseiras da loja, encimado por um pomposo letreiro a dizer “Gabinete da Administração”.
Furioso, abanando o jornal enrolado ao pé da cara do cabisbaixo Baptista, o Caldeira vociferou:
- Já leste a Gazeta de hoje?
- Não, ainda não, mentiu o Baptista...
- Pois então lê o que essa cavalgadura do Gaspar escreveu sobra a minha honrada pessoa!
O jornalista fingiu ler e no firal só lhe ocorreu dizer:
- Ele mal sabe escrever, amigo Caldeira. Não creio que tenha escrito isto.
- Pouco me importa! Assinou-a!
E, suavizando a voz, deu uma amigável palmada nas costas do Baptista e pediu-lhe:
- O gajo não pode ficar sem resposta. Tens que me escrever uma carta a dizer ao Gaspar com quantos paus se faz uma canoa! Com cuidado, usando as palavras que tu sabes escolher melhor do que ninguém, de maneira a enxovalhá-lo com diplomacia, sem asneiredo, sem insultos, senão o gajo ainda me processa.
- Oh amigo Caldeira, não posso. Sou amigo dele como sabes...
O Caldeira deu-lhe um sobrescrito e intimou-o:
- Abre, esse dinheiro é teu. Sei que estás desempregado e há-de te fazer falta.
O Baptista nem queria acreditar! Estavam ali cento e cinquenta euros!
Afastou os pruridos e ao fim do dia foi-lhe entregar a carta que o Caldeira mandou publicar na Gazeta, sob sua autoria, como se tivesse sido escrita por si próprio.
Durante mais de quinze dias o Baptista escreveu outras tantas cartas, alternadamente para o Gaspar e para o Caldeira. E, de cada vez, como o Baptista se começasse a fazer caro, os preços iam subindo. Pela última delas, já o Caldeira lhe pagou duzentos e cinquenta euros!
A Gazeta esgotava-se nas bancas logo de manhã cedo. Os leitores não perdiam pitada da controvérsia entre os dois maiores comerciantes da terra. A publicidade no jornal aumentava e o director chamou de novo o Baptista para reingressar no quadro de colaboradores, visto que as condições financeiras melhoraram a olhos vistos...

Rui Felicio

3 comentários :

  1. As suas crónicas, Rui Felício, sempre bem estruturadas, com um harmonioso e lógico fio condutor da acção, denotando uma perspicácia acutilante das personagens descritas, são extremamente saborosas.
    Contam sobre curiosas figuras populares ou situações do quotidiano, onde o humor nunca está arredio, fazendo passar pelos nossos olhos pessoas bem caracterizadas que, de um modo ou de outro, parece que já conhecíamos, porque o realismo com que as caracteriza assim nos leva a pensar!
    Mas é isso mesmo, esse pormenor da diferença, que faz um narrador com talento!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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