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sexta-feira, 28 de junho de 2013

O RISO DOS PEIXES


Há uns bons trinta anos atrás, o meu primo Tonecas começou a desafiar-me para eu passar a ir com ele à pesca. Fazia-lhe companhia e justificava as suas saídas junto da Laura, sua mulher... Lá ia recusando com um irrefutável argumento. É que eu nunca na vida tinha sido pescador. Desconhecia as técnicas e quais os apetrechos necessários. Porém, perante as repetidas insistências, um dia fui a uma das lojas do Cais do Sodré, e equipei-me a preceito. Comprei uma cana telescópica, um bom e belo carreto dourado, anzóis de vários tamanhos, chumbadas, bóias, bornal, tesoura, pano de linho, balde para o peixe, caixa de plástico para acondicionar os instrumentos, mapa de marés, apoio de ferro para a cana, etc, etc.. Dei uma especial atenção ao vestuário. Um bonito colete com bolsos de caqui, umas botas com polainas, um boné... Experimentei tudo em casa. Mirei-me ao espelho e estava com aspecto de um verdadeiro profissional de pesca. No sábado a seguir , levantei-me cedo e decidi ir sozinho experimentar e treinar, para na semana seguinte não fazer má figura junto do meu primo. Passei pelo Cais do Sodré e comprei quatro pacotes de minhocas, embrulhadas em papel de jornal. Escolhi a praia da Torre. Era cómodo o acesso. Bastava parar o carro e descer umas escadas para a areia.
Carregado com os apetrechos, impecavelmente vestido à pescador, dirigi-me para a beira mar. Já ali se encontrava uma dezena de pescadores espaçados a intervalos de mais ou menos dez metros, alinhados paralelamente à linha de água que em pequenas ondas rebentava na areia. Coloquei-me à esquerda deles, pousei o bornal, aparelhei a cana, meti duas minhocas gordas nos anzóis e, disfarçadamente, observava os olhares de admiração dos meus parceiros desconhecidos. Notava-se neles um certo ar de respeito pela qualidade do meu equipamento. Levantei a cana, puxei-a bem atrás das costas e fiz como tantas vezes já tinha visto fazer a outros pescadores... Dei-lhe um forte impulso e balancei-a para a frente, largando a certa altura o fio de nylon que tinha prendido com o dedo, tal como me tinham ensinado. Ao desprender o fio, tinham me dito, o peso da chumbada fazia com que ela fosse projectada a grande distância indo cair no mar à nossa frente... Depois era esperar com paciência que o peixe picasse e, nesse caso, rodar o carreto para enrolar a linha e arrastar a presa até junto de nós.
Não esperei muito. Vi a ponta da cana dobrar-se e disse para comigo que era a sorte de principiante. Já tinha fisgado um peixe, pensei eu! Nervoso, comecei a rodar a manivela do carreto. Quanto mais rodava, maior resistência sentia. Não havia dúvidas, trazia peixe! E devia ser dos grandes, dada a enorme força que eu sentia à medida que enrolava a linha. Apercebi-me do burburinho que em crescendo começava a escutar do meu lado direito. Olhei e percebi tudo. Ao lançar a linha, devo ter soltado o dedo do fio de nylon antes de tempo e, em consequência, a chumbada não despoletou para a minha frente, mas sim para o meu lado direito indo alojar-se lá longe no areal à direita dos outros pescadores.
Quando comecei a enrolar a linha fui arrastando, sem o saber, uma a uma, as linhas das canas dos outros pescadores que estavam espetadas na areia... Ou seja, fui ensarilhando num novelo cada vez mais complexo as dez linhas à minha direita, juntamente com a minha. Começaram a insultar-me, com ar ameaçador... Vendo o caso mal parado, peguei na tesoura, cortei a linha da minha cana, peguei na trouxa e estuguei o passo em direcção ao carro.... Meti tudo no porta bagagens e olhei de longe, entre receoso e divertido, a azáfama dos pescadores a tentarem desensarilhar o novelo... Entrei no carro e desapareci antes que algo me pudesse acontecer... Passada uma semana, o meu carro tresandava a podre. Tinha me esquecido das minhocas no porta bagagens durante todos aqueles dias...

Rui Felício

7 comentários :

  1. Cá para mim isto é uma história de pescador.

    ahahahahahah

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    Respostas
    1. Pois estás enganada!
      As histórias de pescadores são contadas por pescadores.
      Como eu não sou nem nunca cheguei a ser pescador...

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    2. És um grande pescador de palavras.

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  2. No seguimento da "conversa" no EG de hoje à tarde, posso-te dizer que também me lembro deste teu conto...
    Desta vez, divertido, para descontrair e não para repensar.
    Penso que o Paulo Moura faz o comentário que mais se aproxima do meu, só acrescentaria que para além de um grande pescador és um grande semeador de palavras.

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  3. Ri-me a bom rir com esta história tão bem urdida do malogro inesperado duma aprendizagem de pesca, para a qual se muniu de todos os mais sofisticados apetrechos e vestimentas, além da pose e gestos para a realização do solene acto!...Seja ela verdadeira ou fictícia, não deixa de nos fazer crer que a tenha vivido e, se como pescador foi um rematado falhanço, já o não poderemos dizer como contador de estórias, lançando sempre o anzol à palavra ajustada e servindo-a com verdadeira experiência à "clientela" expectante com um dom invulgar e a segurança da profissão que sabe dominar!
    Continue a pescar palavras e juntá-las com essa mestria, Rui Felício!

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  4. Coitadas das minhocas! Tiveste sorte com os outros pescadores, serem do tipo pacífico e não te correrem à canada...
    Não pescas nada, mas a escrever és o maior!

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