Web Analytics

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

AMOR UTÓPICO


Envolveu sem pressa as curvas generosas do seu corpo com a toalha macia de feltro.Em movimentos suaves como carícias, aquela mulher voluptuosa ia secando a pele húmida, convidativa, nos mais recônditos lugares, com uma destreza que jamais nenhum amante seria capaz de fazer.
Fechou a janela para impedir que o vapor quente da água se escapasse da casa de banho.
Olhou o espelho que reflectia a sua imagem desde o rosto até um pouco abaixo da cintura.
A sua curiosidade feminina levou-a a deixar cair a toalha e observou-se demoradamente...
Com os olhos fixos no espelho perguntou-se mentalmente a si mesma o que procurava ela.

Algum enigmático segredo se mantinha oculto e inexplicado. Uma mulher era apenas aquilo que ela estava a ver? Não seria necessário redefinir as concepções de pecado, de amor, de humanismo, de vida?
Alguma célula mal concebida não estaria em falta ou perdida por um erro de paralaxe que tudo distorcia? Que estranho que ela se sentisse apenas e só aquilo que via!

A ígnea neblina do vapor de água ia tornando a imagem no espelho menos nítida. Sacudiu a cabeça, abandonou estes pensamentos e procurou os chinelos. Claro que não há mais nada, pensou conformada. Virou as costas ao espelho e saiu da casa de banho...
O espelho quis chamá-la, explicar-lhe. Ela não era só o que ele lhe mostrava na sua gelada e estática postura. Aquele corpo seria diferente, quando ela percebesse a verdade mais irrefutável. A verdade do amor que ela nunca teve...

Desgraçadamente ele sofre o seu idílio sem esperança, a indiferença daquela bela mulher dói-lhe, mas a sua rigidez não a atrai. Todos os dias a vê, nua, apetecível, mas nada pode fazer. Será que ela não percebe que não é ele que a reflecte mas sim ela que o reflecte a ele?  

Se por dentro da sua superfície brilhante circulassem vasos sanguíneos, o espelho teria empalidecido quando, subitamente, a viu regressar à casa de banho de onde tinha acabado de sair. Teria ela percebido os seus pensamentos? Teria ouvido os seus sussurros? Teria compreendido o seu drama, o seu amor por ela? Inquietou-se, receoso mas esperançado.

Ouviu-a murmurar enquanto desligava o interruptor, que seria certamente por ela se esquecer tantas vezes de apagar a luz da casa de banho que a conta da electricidade era sempre tão alta no fim do mês.
Deixou o espelho na escuridão. Sem a sua imagem, sem pensamentos românticos, sem utopias, ele nada poderia agora reflectir. Tornou-se nada...
Voltou a ser uma massa fixa à parede sem objectivos, sem significado, como um peito sem amor.

Foi então que todas as pequenas gotas do vapor de água começaram a deslizar pela face nua do espelho.
Como lágrimas...

Rui Felício

11 comentários :

  1. Nunca tinha pensado que o espelho, se fosse pessoa, era o nosso maior confidente.
    Parabéns, Rui. Belo texto!

    ResponderEliminar
  2. Que bela metáfora para uma amor utópico!
    Atónita e arrepiada com o sofrimento do espelho pela frieza sentida quando permite que nos miremos "narcisicamente"( muitas vezes)sem lhe dar o valor que merece.
    Reflecte a nossa imagem exterior e até interior...confidenciamos-lhe a nossa auto-estima,os nossos amores e desamores.Sem ele não passamos!
    Afinal um companheiro diário a quem não fazemos um miminho...
    Nunca tinha reflectido nesta relação afectuosa por indiferença e quão condoída fiquei com as lágrimas derramadas por ostracizado.
    Juro que o vou acariciar.

    ResponderEliminar
  3. Rui, gosto dos teus textos porque são bem escritos, pela beleza dos temas, pela imaginação e pelos finais surpreendentes. Este tem todos esses ingredientes.

    ResponderEliminar
  4. Obrigado Olinda e Alfredo pelas palavras gentis

    ResponderEliminar
  5. Sempre textos muito bem concebidos, originais, alegóricos, que nos encantam como as histórias de Scherezade ao Rei Shariar...
    Quantos "espelhos" rígidos, presos a uma parede qualquer,tímidos, com emoção por revelar, não se apaixonarão por mulheres sedutoras e sem amor, que os olham sem os ver na real dimensão do afecto e só como reflexo dos seus caprichos de beleza e do seu inútil narcisismo?!
    Obrigada, Rui Felício, por este trecho com tanta imaginação!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu é que agradeço a sua presença e o seu comentário como sempre redigido de forma irrepreensivel.

      Eliminar
  6. Que belo texto... Como, aliás, o Rui já nos habituou.
    Gosto de começar a ler, sem ter a mínima ideia de qual será o final, sabendo, no entanto, que não será nunca o que poderá parecer mais lógico.
    Obrigada, Rui, por nos deixares ler as tuas palavras.

    ResponderEliminar
  7. Bem vinda Romicas.

    Aquilo que nos parece ser o mais lógico, é sempre fruto da formatação mental a que o nosso raciocínio foi sendo sujeito desde a nascença.

    Mas o sortilégio da vida é o seu ilogismo, o inesperado, o imprevisto.

    ResponderEliminar
  8. Gostei muito e faço minhas, as palavras do Alf, pois já tenho dito isto vária vezes, noutros contos. Devagarinho se lê e se vai degustando cada letra, cada palavra, cada frase e..todo o conto, até ao inesperado final. Parabéns. Mais um , para o livro.

    ResponderEliminar
  9. Tu que me prendes com tudo o que escreves, arrasaste-me com a beleza e sensibilidade deste teu texto! Não digo conto, porque eu pessoalmente não o considero como tal, direi antes um texto que desde que o comecei a ler me vai prendendo e afastando do real, para me fazer cair num êxtase em que tu com a tua escrita és perito!!! Belo....muito belo Rui, obrigada.

    ResponderEliminar
  10. Leio, devagarinho, saboreando cada palavra e esperando o final inesperado. Este espelho, não o esquecerei mais e, quem sabe, vou fazer dele o meu confidente. Lindissimo!

    ResponderEliminar