Empurrou devagar a porta do palheiro onde dormia, perto da Arregaça, evitando o chiar dos gonzos ferrugentos. Escutou atento, quedo, olhar de lince a perscrutar na escuridão. Nem uma palha mexia, nenhum sussurro. Apenas o desconsolado coaxar de um rã solitária, ao longe, quebrava o silêncio da noite.
Com mil cautelas, o “Carolíngio” voltou a encostar a porta e saiu, pé ante pé, envolto numa esburacada capa alentejana, a cabeça coberta por um seboso capuz de serapilheira que lhe escondia o rosto.
A lua, em quarto minguante, projectava fantasmagóricas sombras dos pinheiros e iriava de luminosas pérolas os charcos formados pelos pingos grossos da chuva que horas antes tinha desabado.
De vez em quando parava, tenso, ouvido à escuta, olho à espreita, o pé direito fincado à frente e a ponta do esquerdo colada à terra, mais atrás. Pronto para o impulso de fuga ao menor sinal...
Mas não. Nada! Só os gemidos da folhagem à passagem da brisa que corria, quebravam a quietude.
Foi subindo, por entre as urzes, o mato, as silvas e o musgo enlameado que atapetavam a colina do Pinhal de Marrocos.
Era perto da mina que estava o seu tesouro, amealhado durante mais de vinte anos de mendicidade na cidade.
Hoje, vinha aumentá-lo, enriquecê-lo, juntar-lhe o pecúlio granjeado durante o dia.
Como sempre, quedar-se-ia junto dele, apalpando-o, tomando-lhe o peso, com o sigiloso testemunho dos pinheiros e das nuvens pesadas que emolduravam o ténue luar. Muito depois, voltaria a tapar a cova com a pesada pedra que a escondia e regressaria.
Guardar as moedas das esmolas que lhe davam, era o único prazer que a vida lhe dera. Nunca desperdiçara um tostão em nada que lhe parecesse supérfluo. Alimentava-se de casqueiros secos, de sopa azedada e de algum resto de carne que lhe davam, vestia-se com roupas que lhe ofereciam. Achava um desperdício, substituir o fétido catre onde dormia desde há anos. Calafetava com lama as frinchas das tábuas do casebre para evitar o frio da aragem e do vento. Sentia-se feliz e, no íntimo, ria-se da vaidosa presunção dos senhores doutores que o esmolavam, dizendo para os seus botões:- o dinheiro que este me dá, faz-lhe mais falta a ele do que a mim...
Levantou a pesada laje que recobria o tesouro, meteu as mãos ávidas de prazer no fundo buraco, vasculhou, rebuscou, mas nada encontrou! Estava vazio! Praguejou, ameaçou em vão, e, por fim, soltou um agonizante grito rouco que o eco da outra margem do Mondego lhe devolveu segundos depois. Alguém descobrira o tesouro e lho roubara...
Pelas suas contas, o suficiente para serem compradas duas ou três casas na cidade!
Pela primeira vez na vida, recriminou-se por nunca ter tirado proveito daquele dinheiro. Mas era tarde!
Não leves a mal repor aqui o meu comentário que data da publicação deste teu conto...
ResponderEliminarEste será talvez um tipo de avareza levado ao extremo. Pelo menos assim o entendo. O próprio nome do protagonista já deixa transparecer que a avareza nasceu com ele!
Até o local que escolheu para ser o esconderijo das moedas que conseguia dos doutores não podia ser mais revelador, de que a avareza vai até aos limites do pormenor de escolher o Pinhal de Marrocos, pois que no nosso tempo Marrocos sigificava " para ali já é Marrocos", uma coisa longínqua, pobre mal cheirosa!
Ainda hoje se usa a expressão: para aí não, isso já é Marrocos!
Claro que isto sou eu a divagar nestas linhas mal alinhavadas!
Para os do nosso tempo Pinhal de Marrocos foi um lugar cheio de enigmas, de aventuras guerreiras, de perigos com poços encobertos, de magustos e piqueniques, de bailes ao som da grafonola. Era provavelmete também onde morava "um sultão" na Quinta da Malavada!
Numa dessas incursões a que se dava o nome "descberta do tesouro"...lá se foram as moedas do nosso avarento Carolíngio!
Hoje só perdura o nome...porque já nem há Pinhal e Marrocos de Avião é já ali!
Muito tarde...E vociferar contra si próprio nada adiantava...No entanto,
ResponderEliminarestupefacto deverá ter "puxado"os cabelos,"batido"com a cabeça na pedra e "chorado" de raiva!
Seria o que eu faria...
A ignorância mais que a avareza para além dos costumes de então!
Actualmente,é retomado este uso e os roubos são constantes.
E sempre os mais débeis económicamente e os idosos são quem o fazem....a ignorância perpétua-se,infelizmente.
Os responsáveis pelas políticas desgovernadas continuam interessados por esse obscurantismo.
Revi o texto com o mesmo interesse como se fosse a 1ªa vez que o lesse.
Bem-hajas!
Apetece-me dizer: foi mesmo bem feito!
ResponderEliminarTens razão Paula!
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
EliminarAh como sois maus!...
EliminarNão acredito que "vejam" por esse prisma o comportamento de um homem simples cujo futuro o amedrontava e ignorante.
Eliminar não existe como opção.O 1º comentário não apareceu e,daí,escrever o 2º.
ResponderEliminarBeijinhos