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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

UMA DIA NO BUÇACO

Fizemos uma excursão à Serra do Buçaco, numa camioneta alugada em Coimbra. Merendámos na mata o farnel que cada um tinha levado de casa. Bolos de bacalhau, sandes de presunto e de queijo, bocados de galinha assada, broa e azeitonas retalhadas, coiratos, torresmos, de tudo havia... Umas goladas de vinho e de laranjada Bussaco acamavam a comida no estômago. No fim uns bolos de arroz e uns queques comprados a crédito, no dia anterior, no café do Sr. Silva.
Já no sopé da serra, numa tasca, afastámos as fitas metálicas penduradas na porta para afastar o mosquedo e entrámos para tomar a bica. À porta, um homem com uma chibata na mão, trazendo um pequeno burro pela arreata, perguntava-nos se queríamos dar uma volta no asno, por vinte e cinco tostões cada viagem. Perguntámos-lhe se o bicho dava coices e o homem sossegou-nos. Que não, que era manso...
O Pires foi o primeiro a montar o animal. O dono recebeu o dinheiro, sentou-se num marco de pedra à beira da estrada e zurziu uma chibatada no lombo do quadrúpede que, espetou as orelhas e arrancou a trote calmo, até se perder de vista na primeira curva do caminho. Uns bons dez minutos passados surgiu do lado oposto da povoação ainda com o Pires em cima dele.
Depois de mais alguns terem feito o percurso que o burro já sabia de cor e salteado, chegou a minha vez. Paguei os vinte e cinco tostões e alcei a perna por cima do cachaço do malcheiroso animal. Alto como sou, encolhi as pernas para não ficar com os pés no chão. O burro arrancou após a chibatada do costume.
Estava tudo a correr bem quando já à chegada, inesperadamente, mordido por algum insecto invisível, o pequeno jumento deu dois coices, e partiu à desfilada pelas ruas da aldeia, com o focinho entre as pernas dianteiras, zurrando sem parar. Uma matilha de cães escanzelados vindos não sei de onde, perseguia o burro, latindo e rosnando. Mulheres de lenço preto na cabeça acudiam aos postigos, às janelas, para verem a polvorosa.
Um rancho de cachopos, em grande gritaria, foi-se formando atrás de nós, correndo e serpenteando pelos quintais e pelas ruelas.
Numa das vezes que passámos perto do café, gritei, aflito, para o dono do jumento: - Como é que eu paro isto?
Desmonte homem, desmonte! Assim fiz! Empertiguei-me, deixei os pés arrastarem pelo chão e o asno esgueirou-se-me por entre as pernas, continuando desenfreado em direcção à mata.
Valeu-me ser comprido!


Rui Felício

6 comentários :

  1. Estou a imaginar a cena! Tenho uma parecida com um cavalo, em Timor, mas como não tenho as tuas gâmbias, dei um bruto malhão nas, felizmente, sem consequências de maior. O cavalo é que andou perdido na montanha quase o dia inteiro!

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  2. Fiquei vacinado com esta incursão pelas cavalarias. O Alfredo não sei, mas se calhar optou pelo transporte automóvel,definitivamente.

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  3. Pois eu nunca andei de cavalo nem de burro. O cavalo é muito alto e para o burro para uma emergência igual à do Rui sou "roda 26"!Tava feito ao bife!

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    1. Juan Jimenez no seu delicioso livro "Platero e Eu" descrevia um burrito com a doçura e o amor dos Poetas de gema! Foi um livro que me emocionou nos meus 17 anos e que sabia de cor o início: "Platero é pequeno, peludo, suave", que eu dizia com encanto aos meus amigos que, de imediato, como bons machões que eram na altura, mofavam da minha inocência e repetiam a frase como bobos da corte!... De facto, as primeiras palavras do livro que, de certo, conhece tão bem como eu, eram: "Platero es pequeño, peludo, suave; tan blando por fuera, que se diría todo de algodón, que no lleva huesos. Sólo los espejos de azabache de sus ojos son duros cual dos escarabajos de cristal negro.

      Lo dejo suelto y se va al prado, y acaricia tibiamente con su hocico, rozándolas apenas, las florecillas rosas, celestes y gualdas... Lo llamo dulcemente: “¿Platero?”, y viene a mí con un trotecillo alegre que parece que se ríe, en no sé qué cascabeleo ideal...

      Come cuanto le doy. Le gustan las naranjas mandarinas, las uvas moscateles, todas de ámbar; los higos morados, con su cristalina gotita de miel...

      Es tierno y mimoso igual que un niño, que una niña...; pero fuerte y seco por dentro, como de piedra... Cuando paseo sobre él, los domingos, por las últimas callejas del pueblo, los hombres del campo, vestidos de limpio y despaciosos, se quedan mirándolo:

      - Tien’ asero...

      Tiene acero. Acero y plata de luna, al mismo tiempo."

      Quando li o seu espantoso conto queiroziano, lembrando também José Rodrigues Miguéis e tantos outros nomes sonantes da nossa literatura, passei uns bons momentos de lazer com o riso aninhado nos meus lábios e o espírito atento à sua impecável descrição. Tudo é meticulosamente escrito e o clima vai num crescendo de graça e humor que nos predispõe para um final sempre curioso! Escusado será dizer que não pude conter uma sonante gargalhada com a situação final que lhe ocorreu e que eu pude perfeitamente ver à minha frente! Mas, como aconteceu com o Carlos, a minha asa protegeu preferencialmente o burrito, animal por quem nutro uma enorme estima por ser não só muito inteligente, mas também por fazerem dele bicho de carga e pela poesia que Jimenez envolveu este asinino a qual passou para mim como por osmose!
      Acho que quem saiu em desvantagem foi o jericó e não o Rui, que saiu incólume com o burrito a escapulir-se entre as suas grandes pernas, enquanto ele teve de carregar com os seus amigos e finalmente com o gigante mal preparado, que o fez passar pelo opróbrio do trote desatinado, da perseguição da matilha de cães e da garotada da aldeia, do cansaço, do zurrar de indignação e finalmente do seu fácil desenvencilhar-se dele, esticando apenas as enormes pernas encolhidas do chão...A grande vantagem de não precisar nunca de recorrer a andolas para colmatar situações mais insólitas!...
      O conto está excelente, ri-me da sua situação aflitiva e de fácil resolução que não lhe ocorreu, ou não quis que acontecesse para exactamente o caricato residir nesse pormenor tão contornável!
      Continue a privilegiar-nos, Rui Felício, com as suas encantadoras histórias, verdadeiras ou ficcionadas! É um enorme prazer poder lê-las!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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